Sem Carlos Marçal e as suas cassetes VHS o Maranho da Sertã não seria tão famoso
Não é um enchido, é um ensacado. E é diferente de tudo que se mete dentro de uma tripa. O maranho era iguaria de festas familiares, mas ficou famoso por causa da visão de um empresário .
Sobre o Maranho da Sertã (produto com Indicação Geográfica Protegida) sabíamos quatro coisas: que são saborosos e inusitados; que são feitos com carne de cabra, arroz e hortelã; que se podem comprar crus ou já cozidos e, finalmente, que não existe uma tese consensual para a origem de um produto que, pelos ingredientes, temperos e sabor, nos remete para o mundo árabe. O que desconhecíamos é que, tecnicamente, o maranho não é um enchido — é um ensacado — e que o responsável pela sua popularização foi Carlos Marçal, empresário do sector da restauração, hotelaria e eventos na Sertã e arredores.
Decorria na Sertã, em Julho, a 2.ª edição do Dia da Gastronomia – Património Cultural, da responsabilidade da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), quando começámos a ouvir o nome Carlos Marçal sempre associado ao maranho, como se tivesse sido ele o criador do ensacado (raio de nome). Ele era maranho para aqui, feiras para ali; maranho para um lado, cassetes VHS em autocarros para o outro. E foi quando se chegou a esta parte das cassetes VHS que mandámos parar a banda.
Mas que raio tem o Maranho da Sertã a ver com isso das cassetes? “Ah, não conhece a história? Espera lá. Ó Elsa, não se importa de chegar aqui?” E, assim, a partir de uma pergunta singela a alguém que estava num anfiteatro, ficou-se a conhecer a vida de uma família que, há 50 anos, veio de Angola com uma mão à frente e outra atrás — como quase todas, certo — e criou um pequeno império empresarial na Sertã (emprega cerca 90 pessoas), mudou a restauração e a hotelaria na região e continua a lutar com outros empresários para retirar a Sertã e a região envolvente da ignorância nacional.
Carlos Marçal foi pequeno para Angola, casou-se com Maria Helena e viu nascer na ex-colónia os seus três filhos. Regressa em 1975 e decide — conta ele — “mudar a restauração da cidade”. E, vai daí, ele, a mulher, uma irmã e o cunhado abrem o restaurante Santo Amaro. “Nem eu sabia alguma coisa do negócio, nem a minha mulher tinha alguma vez trabalhado numa cozinha, mas como não havia outra solução que não trabalhar, decidimos fazer algo diferente do que já havia. Naquela altura não se comia peixe fresco nos restaurantes da Sertã, pelo que foi por aí que fomos. E assim fizemos a diferença.” E de tal maneira que a mulher que não sabia cozinhar criou uma sopa de peixe que, ainda hoje, leva muita gente ao Santo Amaro. Helena faleceu em 2012, pelo que a sopa tem hoje o seu nome.
O negócio corria bem quando Carlos Marçal, em 1984, vai ao Festival Nacional de Gastronomia, em Santarém. Pensando em algo que pudesse fazer a diferença, lembrou-se do maranho, que, ao contrário do que acontece hoje, era apenas uma iguaria de festas populares ou familiares na região. “Não havia um único restaurante que apresentasse o maranho na ementa”, diz-nos o empresário. E quem é que fez os maranhos para o evento? “A minha sogra, que os preparava bem e segundo as tradições.”
Como o ensacado era desconhecido e como podia ser encarado como algo forte (carne de cabra), Carlos Marçal optou por servi-lo como entrada. Cozia o bucho da cabra recheado, cortava-o às rodelas e servia em modo de petisco e com o perfume da hortelã. O sucesso foi tal que logo decidiu meter o maranho na carta do Santo Amaro. Como entrada e, também, como prato principal. “Eu estou convencido que foi o conceito de entrada que fez o sucesso do maranho porque dizíamos aos clientes que se não gostassem não teriam que pagar. Como não conheciam, não iam arriscar em modo de prato principal. Mas depois de aceitarem o sabor, aí sim, passavam a pedir como prato principal.”
A partir desta experiência, sempre que ia a algum lado representar o restaurante ou a Sertã, levava maranhos. Rui Lopes é investigador na área da gastronomia e é enfático ao afirmar que “a popularização do Maranho da Sertã se deve a Carlos Marçal”. “Ninguém faz ideia da quantidade de maranho que ele ofereceu por todo lado. Ninguém.”
Já a história das cassetes VHS é daquelas coisas à laia de ovo de Colombo. Como, a partir dos anos de 1990, o excursionismo se transformou numa moda e como os autocarros passaram a modernizar-se com circuitos internos de televisão, Carlos Marçal teve a ideia de fazer pequenos vídeos e editá-los em cassetes VHS, que passaram a ser vistos nas viagens de autocarros com turistas. Os vídeos mostravam as riquezas turísticas da Sertã e, claro, destacavam o maranho. Quando os turistas chegavam à terra, era certo que iriam procurar a iguaria. Depois, os que gostavam da coisa podiam comprá-la para a preparar em casa, visto que, com cuidados mínimos, o maranho passa bem a viagem.
Hoje, o Maranho da Sertã é um produto cujo valor económico ninguém conhece ao certo, com duas unidades fabris locais dedicadas ao assunto. No caso da família Marçal, a receita é sempre a mesma: carne de cabra picada com chouriço magro e presunto, que é depois temperada com sal e pimenta e envolvida com arroz carolino, hortelã com fartura e azeite. Este preparado vai para dentro do bucho cozido da cabra e segue para cozedura durante hora e meia, na companhia de um courato, que é para dar alguma gordura adicional ao ensacado. É diferente de qualquer outro ‘enchido’ que por cá se faz por causa do sabor fresco da hortelã. Quem gostar de cabra, arroz e hortelã estará nas suas sete quintas. No Verão pode acompanhar-se com uma salada, no Inverno com hortaliça da época. Gente com pouco gosto pede batata frita.
Aos 75 anos, Carlos Marçal é daqueles que tem uma ideia muito vaga do conceito de reforma. Num dia está em Abrantes a fazer um evento para 500 pessoas e no dia seguinte está em Coimbra ou em Braga a fazer outro para 1000 convidados. Podia delegar funções nos três filhos, mas prefere continuar a trabalhar. “Porque posso e gosto.”
Com a filha Elsa — que é directora do Convento da Sertã Hotel, um espaço cheio de história — passa o tempo a criar iniciativas destinadas à promoção de uma região com grande beleza natural envolvente, mas que é desconhecida pela generalidade dos portugueses. O maranho já fez e faz muito pela Sertã. Falta agora, segundo Carlos Marçal, captar visitantes “por causa do nosso património natural, mas em estratégias concertadas com outros municípios”.
Os maranhos da família Marçal estão à venda nos restaurantes Santo Amaro e Ponte Velha. Crus custam 16€ e cozinhados 18€.