Pseudociência na universidade
Uma universidade de excelência não pode permitir que se publiquem com a chancela da instituição trabalhos que corroborem a desinformação disseminada por referências temáticas pseudocientíficas.
A Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE) é uma prestigiada instituição de ensino superior que possui um alargado portefólio de formação de executivos nas diversas áreas de conhecimento e tipologias. Em 2024 subiu à 13.ª posição mundial no ranking do Financial Times que avalia os melhores programas customizados para formação de executivos.
Em Novembro de 2023 foi apresentada na Nova SBE uma tese de Mestrado Executivo em Liderança, cujo trabalho final (work project) se intitula “A liderança política durante a pandemia: a comparação entre os casos de Portugal e Suécia”. De acordo com o programa do mestrado, o trabalho final destina-se a preparar os alunos para atividades de investigação aplicadas à realidade empresarial. Surpreendentemente, o mestrando optou por um enquadramento ideológico do seu trabalho, começando por agradecer ao líder católico tradicionalista brasileiro Plínio Corrêa de Oliveira, simpatizante da ditadura militar e fundador da organização fascista Tradição, Família e Propriedade, e ao seu seguidor Falleiro Garcia, o terem-lhe incutido as “bases sólidas dos princípios cristãos”.
De seguida, o mestrando dá a conhecer as fontes em que se baseou (nomeadamente com transcrição de entrevistas) para avaliar a liderança da pandemia da covid-19 em Portugal, a saber: Rui Fonseca e Castro, ex-juiz do Tribunal de Odemira e atual dirigente da organização Habeas Corpus, propagandista da Alemanha nazi nas redes sociais e protagonista de inúmeras ações de rua violentas e que é catalogada pelo mestrando como “associação de defesa dos direitos humanos”; o presidente da Assistência Médica Internacional, Fernando Nobre, que a partir de 2020 resvalou numa deriva negacionista da covid 19; e periódicos digitais de desinformação negacionista, como o The Blind Spot (descrito como “prestigiado periódico online”) e o Página Um.
Se bem que a liberdade da investigação científica seja um elemento constitutivo da liberdade académica e da integridade científica na Europa, ela deve assentar numa base ética que obriga, entre outros, a uma referenciação das fontes usadas na produção do trabalho científico rigorosa e abrangente, tal como expresso no Código de Ética da Universidade Nova de Lisboa.
Este trabalho académico, ao excluir qualquer opinião ou auscultação dos responsáveis pela liderança da pandemia em Portugal (médicos, decisores políticos, instituições da área da Saúde), baseando-se em opiniões sem qualquer credibilidade científica e de matriz ideológica, ilustra uma ameaça que vem sendo denunciada pela comunidade científica internacional, a da penetração da pseudociência nas universidades.
Nas universidades públicas, a penetração e promoção da pseudociência tem-se manifestado sobretudo nas ciências da saúde, com particular enfoque nas medicinas alternativas. Em Portugal, na sequência da aprovação da polémica legislação das terapias alternativas, apenas uma das licenciaturas regulamentadas (osteopatia) está a ser lecionada numa instituição de ensino superior público, o Instituto Politécnico do Porto.
Em França, em 2021 foram listadas 32 universidades permeáveis às pseudociências, entre as quais a Sorbonne, que oferece um curso de práticas corpo-espírito em medicina tradicional chinesa. Durante a pandemia da covid 19, as teorias negacionistas de manipulação e falsificação dos dados científicos foram cavalgadas pela extrema-direita no âmbito da sua agenda política, como refere um manifesto de um coletivo de cientistas franceses.
No Reino Unido, a concessão de graus académicos em medicinas alternativas por universidades públicas foi denunciado na revista Nature e, em contraponto, um grupo de estudantes da Universidade de Cambridge criou o movimento Estudantes contra a Pseudociência.
Na Austrália, a reputação e credibilidade internacional das universidades públicas tem vindo a ser destruída pelo aumento da oferta de cursos pseudocientíficos na área da saúde. No Brasil, nos últimos anos têm sido introduzidos novos cursos promovendo as pseudociências em universidades públicas de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, nomeadamente em temas esotéricos como Terapia Floral, Fisiologia Chinesa e Práticas Energéticas, Astrologia, Corpo e Saúde, Cromoterapia, e Ecologia da Mente, a que não é alheio o peso político das igrejas evangélicas.
O caso acima reportado na Nova SBE tem uma particularidade no que respeita ao modo como a pseudociência penetrou na universidade. Tratou-se da atribuição de uma graduação académica na área da Economia e Gestão, que se baseou em fontes do ativismo negacionista que reinterpretaram os dados sobre a covid 19 e respetiva gestão no contexto da saúde pública de acordo com uma visão ideológica.
Uma universidade de excelência académica não pode permitir que, a coberto da liberdade de investigação científica, se publiquem com a chancela da instituição trabalhos que corroborem a desinformação disseminada por referências temáticas pseudocientíficas, pelo que o registo desta tese de Mestrado Executivo no repositório da Nova SBE sem retratação institucional poderá vir a refletir-se na classificação no ranking internacional do Financial Times.
Nota: este artigo de Opinião foi objecto de dois direitos de resposta: um exercido pelo director do Página Um e publicado a 27.08.2024, cujo teor pode ser lido aqui, e outro exercido pelo director do The Blind Spot e publicado a 03/09/2024, que pode ser lido aqui