Está tudo sob controlo

A realidade não acontece por procuração do desejo, nem tão pouco o desejo se controla, que nas relações e no amor, não se calculam as distâncias em pés, nem em quilómetros, nem em anos.

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"A vida é muito má a matemática..." Ilustração: Rita Lagarto
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Está tudo sob controlo. Tudo.

Fez check in online? Pode passar. Tem cartão de embarque? Por aqui. Mantenha-se na fila. Luz verde. Avance. Luggage drop off, por ali! Tem bagagem de mão? Líquidos não passam. Alguém pode ter mexido na sua bagagem? Please open your bag! Pode tirar o cinto? Nada dentro dos bolsos? Pode passar. Telemóveis, tablets, computadores? Fora da mala! Drogas leves, drogas pesadas, armas, más intenções? Fora da mala! Faster! Please! Mais rápido! Por aqui! Stop! Vamos só fazer o controlo de segurança. Tudo bem. Pode passar!

Está tudo controlado… No aeroporto, as máquinas de deteção de metais controlam as bagagens, os seguranças controlam os passageiros, os administradores alfandegários controlam a carga, os controladores aéreos controlam o tráfego, os radares controlam os aviões, os instrumentos de voo controlam as informações da aeronave, os pilotos controlam os instrumentos de voo, as válvulas controlam a pressão de ar dentro da cabine: “As máscaras de oxigénio encontram-se num compartimento acima da sua cabeça. No caso de caírem, puxe a máscara e aplique-a sobre o nariz e a boca. Ajuste o elástico à volta da cabeça e respire tranquilamente.”

…Tranquilamente. Está tudo controlado.

Nunca estive num avião em que tivessem saltado as máscaras, ainda assim, suspeito que assim que visse aqueles cones amarelos semelhantes a filtros de café nos quais estaria depositada a minha hipótese de salvação, a baloiçarem diante do meu rosto, provavelmente a minha respiração seria tudo menos tranquila, apesar de saber que a percentagem de ocorrer um acidente fatal num avião comercial é de 0,000017%. Até o acidental está calculado, aferido… controlado.

O voo segue em velocidade de cruzeiro, sem percalços, sem turbulência, sem atrasos. A tecnologia embala-me numa bolha perfeita de conforto, glória e inércia, e eu dormito. Estou a 42 mil pés de altitude, cerca de 13 quilómetros do solo, o ar que me mantém viva é gerado artificialmente, e no entanto não há no meu corpo uma ponta de alarme, um sinal de alerta. Nada diria que descendo de uma espécie que outrora podia facilmente sucumbir ao encontro fatal com as mandíbulas de predadores, só por dormitar, só por uma mera distracçãozinha a meio da noite, e falta de café para vigiar a entrada da caverna. O meu instinto milenar completamente amnésico, perdido algures num recanto do meu cérebro reptiliano.

Assim que aterro, os ecrãs indicam-me o número da passadeira a seguir, o corredor, a saída para a estação de comboios. Verifico os horários na aplicação, compro o bilhete online, avanço na dianteira com o mapa no ecrã do telemóvel a arrepiar caminho, com a setinha do maps a apontar a direção, e sigo sem dificuldades, nem numa hesitação, nem um impasse.

Os caminhos estão indicados, as contingências sinalizadas: “Suspensão de linha. Fazer transbordo. Caution! Mind the gap”, tudo pré assinalado, os satélites controlam a minha posição, ninguém diria que não conheço o percurso, o improviso esbate-se, eu esbato-me entre a multidão, nem sequer tenho de me dar ao trabalho de calcular se viro à esquerda ou à direita, avanço sem ter de falar com ninguém. Sem ter de falhar. Com ninguém. Estou munida de telemóvel, com dados móveis, GPS, relógio com cardiofrequencímetro, tablet com Spotify, tudo o que quero ouvir, acontece, o mundo rola ligeiro debaixo dos meus pés como uma passadeira de ginásio a fazer girar a paisagem.

Viajo para um desses países centro-europeus onde as ruas são limpas, os transeuntes educados, os condutores regrados. Ninguém excede os limites de velocidade, ninguém passa fora da passadeira, as vacas pastam atentas ao limite das cercas, sem trespassar, a comer a relva perfeitíssimamente, geometricamente, rodeadas de planícies cobertas de campos eólicos, carregadas de moinhos modernos — gigantes de metal e fibra de vidro — com a sua silhueta elegante, na vanguarda da ecologia, aquele design minimalista-sustentável-o-Planeta-está-um-caco-mas-don’t-panic-está-tudo-controlado. Recordo-me do Dom Quixote que via gigantes nos moinhos de vento, enquanto o seu escudeiro Sancho Pança o tentava dissuadir da miragem e de lutar contra eles.

Vistos de longe, parecem-me feitos de papel, frágeis, fáceis de rasgar.

Durmo numa casa climatizada, nem um vestígio do frio das cavernas, mesmo que a temperatura desça lá fora, dentro do meu quarto está tudo controlado, temperado, ameno.

A minha anfitriã planeou tudo. Gosta de viver ali porque nunca há imprevistos. Está tudo controlado. Mostra-me as redondezas, a vizinhança serena, as famílias contabilizadas nos tamanhos dos carros elétricos, as casas moderadamente abastadas, os horários exatos dos empregos, dos supermercados, dos serviços, as taxas controladas de lixo a depositar, a agenda dos detritos recicláveis.

Explica-me que gosta de viver ali porque sabe sempre com o que pode contar: o salário estimado, a progressão de carreira, que ainda agora começou. Ela tem 28 anos, menos 13 do que eu (13 — a mesma altitude a que voa um avião comercial, temos uma diferença etária de 42 mil pés). Quer viver na cidade x, adquirir contrato na firma y, conta arrendar uma casa por um ano dentro dos valores de mercado, e depois comprar. E ele? Ele vai mudar-se para o país com ela, vai trabalhar a um raio de não mais de 25 quilómetros de casa, mesmo que ainda não saiba onde, o mercado é confiável. Deslocar-se-ão a pé, ou de transportes, pois vão encontrar casa no centro, moradia de preferência, apartamento não, por agora basta um carro, terão dois cães, dois filhos, três, não mais, e até aos 35 anos, nunca depois…

“…Porque depois está calculado que a reserva de ovócitos seja apenas de 15%, é só fazer os cálculos, as probabilidades são muito menores” — esclarece-me, enquanto o meu útero se retrai, por não ter tido filhos, envergonhado por nunca ter sido bom a matemática, como uma publicidade na montra de um banco que faliu. Enquanto isso, ela assegura-me que “o plano é progredir a carreira até aos 40, investir até aos 50, com comunhão de bens, têm exatamente a mesma idade, nasceram apenas com um mês de diferença, como dois herdeiros prometidos, é só fazer as contas, entrarão na reforma na mesma altura, talvez voltem para Portugal.”

Está tudo sob controlo.

“E já planearam tudo isso? “, pergunto-me. Pergunto-lhe.

Sim.. Planearam tudo, mesmo antes de começar a namorar já tinham planeado ficar juntos para sempre.

“Sabes, nós os jovens somos assim!”, diz-me cândida, crédula, enquanto eu sinto que o guarda sol nas minhas mãos se retrai e transforma subitamente num andarilho.

“Estás a chamar-me velha?”, gracejo. Mind the gap!

Recordo-me de um livro que li quando tinha a idade dela: O Cisne Negro, sobre o fenómeno da imprevisibilidade, a força do inesperado, do incalculável, onde o autor Nassim Nicholas Taleb defende uma sociedade governada com base na consciência da ignorância, não do conhecimento. Procuro adverti-la, qual Sancho Pança a Quixote, sobre a miragem. Começo a refutar que o acidental é o mais provável, que a vida tem desvios e atalhos, que o improviso pode ser um dos melhores signatários da felicidade. Que a realidade não acontece por procuração do desejo, nem tão pouco o desejo se controla, que nas relações e no amor, não se calculam as distâncias em pés, nem em quilómetros, nem em anos, e que por isso, não, não está tudo “sob controlo”, que a vida é muito má a matemática...

A cara dela acende o botão de alarme. Cai a máscara. De oxigénio. Disparam os alarmes. Pânico. Por momentos ela fica sem ar. Brace for impact!

Na manhã seguinte, ela vai trabalhar e eu decido sair sem dados móveis, nem ligação Wi-Fi. Inspiro-me nas histórias do Júlio Verne: Viagem ao Centro da TerraCinco semanas em um balão. Assalta-me o imaginário dos exploradores da selva do séc. XIX, que me ocupava os sonhos e fantasias de viagens em miúda. Lembro-me de um sonho recorrente: o de fazer uma volta ao mundo de balão de ar quente, conduzida pelo caminho fortuito e inconstante do vento e dos malabarismos das moléculas de oxigénio. Em que lugar o terei perdido? Será que está arrumado junto com o meu instinto de vigília?

Levo o mapa em papel da cidade mais próxima, monto uma bicicleta alugada, arrepio caminho entre planícies desconhecidas, entre os gigantes de papel, sem o astrolábio da setinha azul do Google para me orientar, sorrio aos nativos, faço perguntas em inglês, levo buzinadelas gentilmente irritadas quando me desvio da faixa dos ciclistas, estaciono por engano no parque de camiões, uso a casa de banho de serviço dos funcionários da estação de serviço, improviso… Percebo que o meu cartão de crédito não funciona no multibanco, sinto o risco de sucumbir não entre as mandíbulas de um predador, mas por saltar a refeição do almoço, pedalo perto de 70 quilómetros entre enganos e desvios, apanho um escaldão nórdico porque não meti protetor solar, sou mordida por mosquitos não da selva, mas mosquitos benignos, da pradaria, praguejo em português, amaldiçoo o selim. Regresso a casa com uma contratura na lombar.

A minha anfitriã ainda tem o rosto alarmado da nossa conversa.

“Esquece o que te disse, vai correr tudo bem.” Pacifico-a.

Sorrio e abro os braços em arco, para um abraço, em forma de colete salva vidas — aqueles que ficam debaixo dos bancos dos aviões e servem para nos manter à tona de água em caso de desastre, mesmo quando sobrevoamos somente sobre terra seca.

Amanhã vou de comboio. E uso o Google Maps.

Está tudo controlado.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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