Um coração que bate em dois lugares ao mesmo tempo
Ter família emigrante é viver com o coração dividido. Um coração partido pode voltar a ser inteiro, mas o tempo oferece pouco alívio para duas metades condenadas a encontrar-se no verão e no Natal.
Ainda há poucas horas estávamos a celebrar a vida, comendo leitão na Bairrada, e agora a Rute, o Tom e os miúdos já estão num avião de regresso à Holanda. A casa dos meus pais, que durante quase duas semanas se encheu de uma alegria capaz de aquecer os corações mais frios, foi tomada por um silêncio insuportável. Quando a minha irmã e os meus sobrinhos partem, fica só o vazio.
Ao lado da cama onde durmo quando regresso a esta casa está outra, desfeita, onde já não dorme o Simão. Na mesinha de cabeceira que separa as duas camas já não encontro o livro Escape Room, da Maren Stoffels, a sua autora favorita. No chão, já não está uma mala aberta com as suas roupas e o quarto já não fede a repelente para os insetos que não o poupam. Tenho finalmente a quietude que preciso para continuar a ler o Apenas Miúdos, da Patti Smith, sem ter de pedir ao Simão que coloque uns auscultadores para não me perturbar com o som do iPad, mas já não tenho vontade de ler. Estou entorpecido pela saudade e pela tristeza.
Até ao Natal, o Simão já não vai entrar no quarto para me mostrar, orgulhoso, as roupas que comprou e já não vou ter oportunidade de lhe elogiar o novo penteado. Há dois verões era um miúdo, brincávamos com criar uma linha de roupa com uma personagem que inventámos nessas férias, o Mr. Buttcheeks, e agora é um rapagão cheio de pinta. Em menos de um ano, cresceu mais de dez centímetros. Em cada um deles há um punhado de histórias que se perderam na distância que nos separa.
As gargalhadas dos miúdos já não ecoam pela casa. Já não os ouço a correr pelos corredores. Já não vejo o Rúben a jogar futebol no pátio com o primo Gonçalo, o filho mais velho do meu irmão Paulo. Já não tenho de lhes dizer para não falarem neerlandês e o Rúben já não precisa do tradutor do Google para conversar com a avó. Também já não tem de se levantar cedo para ir surfar, um vício que lhe incuti e que espero sirva para se lembrar sempre de mim com carinho. Até voltar a Portugal, resta-lhe uma nova piscina de ondas criada num canal de Roterdão, cidade para onde a minha irmã se mudou há mais de 20 anos.
O Rúben foi o meu primeiro sobrinho e foi com ele que aprendi que os sobrinhos são os filhos que não temos de educar; só temos de estar presentes e amá-los incondicionalmente. Parece que foi ontem que fui buscá-lo de surpresa à creche e ele começou a esfregar os olhos, como que não acreditando que eu estava mesmo ali, no país dele. Daqui a poucas semanas, vai começar a estudar Gestão na Universidade Erasmus Roterdão, um caminho que parecia improvável há três anos quando a dislexia e o défice de atenção o impediam de cumprir o seu potencial escolar. Comovi-me quando, no início de julho, o meu cunhado nos enviou um vídeo que mostrava os colegas dele a aplaudi-lo de pé por ter acabado o secundário com distinção cum laude. Senti uma emoção agridoce: fiquei feliz por ele, mas triste por não estar lá num momento tão marcante.
Há um preço emocional muito elevado que se paga quando parte de nós vive longe. Ter família emigrante é viver com o coração dividido. Um coração partido pode ser remendado, voltar a ser inteiro, mas não há remédio para um coração que bate em dois lugares ao mesmo tempo, duas metades condenadas a encontrar-se no verão e no Natal. A cada nova partida, a saudade aperta e a angústia rasga-nos por dentro. Podemos tentar conformar-nos, mas nunca fica mais fácil. O tempo oferece pouco alívio para esta dor surda.
Quando me despeço da Rute, do Tom e dos miúdos, num abraço demorado que teima em não os largar, tento, sem sucesso, conter as lágrimas, ensaiando um sorriso envergonhado que não disfarça a tristeza. A minha irmã esboça umas palavras bonitas, mas abrevio a conversa porque não quero desabar à frente deles. Mal saem para o aeroporto, subo para o quarto, choro em silêncio e acabo de fazer a mala. Em menos de nada já estou de regresso a Lisboa porque não consigo suportar o silêncio da ausência deles.
Durante estas férias de verão, o Rúben, que pouco português fala, andou fascinado com o ditado popular “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Pedia-me que o dissesse a toda a hora e depois ele repetia-o, num esforço inglório para o pronunciar de forma correta.
“O que os olhos não veem, o coração não sente”. Longe da vista, longe do coração. Esqueci-me de lhe dizer que era uma patranha, uma grande treta.
Faltam 130 dias para o Natal.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990