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Se eu falo português, minha terra é aqui
Não há nenhum português que não tenha na família algum emigrante, heranças culturais africanas, mouras ou indígenas e, da mesma forma, nenhum brasileiro que não seja também africano ou português.
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Descobri Portugal bem depois de 1500, semanas mais tarde de o professor Armando Faria — meu saudoso progenitor, português de Ourém, aposentado como docente de letras e filosofia da Universidade de Brasília (UnB) — alertar-me que a última palavra dos Lusíadas era inveja.
Nos prédios onde vivi uma vida na zona sul do Rio de Janeiro, ainda hoje existem quartos de empregada, casas de zeladores em instalações no vão das escadas dos edifícios, onde moram com mulher e dois filhos, elevador de serviço para empregadas domésticas, porteiros a chamar condôminos de doutor.
No lugar da garota de Ipanema aos domingos no calçadão, encontram-se um time de babás pretas uniformizadas, empurrando carrinhos com bebês brancos à frente dos pais que passeiam de mãos dadas rumo ao morro dos Dois Irmãos.
Na semana em que pousei no aeroporto da Portela, em Lisboa, ao subir a Rua Castilho, no parque Eduardo VII, passei por uma senhora preta empurrando um carrinho de bebê. Não contive o ímpeto de olhar a criança, inconscientemente, à espera de ver uma criança branca. No entanto, era a própria mãe com seu filho.
Nas tascas, era comum ver patrões e empregados desfrutando a folga juntos, os ginásios e os hospitais públicos portugueses igualmente frequentados por ricos e trabalhadores. Delícias de um país socialista.
Uma década e meia mais tarde, a paixão por Lisboa resiste. Verdade que, aos trancos e barrancos, entre o azul-Lisboa do céu, as fachadas rosas dos prédios, o sol da manhã a bater nos azulejos, as luzes amarelas de Alfama à Madragoa nas madrugadas entre melismas e sextilhas de um ou outro fado, até ouvir o refrão mais recente “Volta para tua terra”.
No Rio, não tive treinamento para o preconceito. Não era suburbano, preto, índio ou nordestino, apenas um brasileiro pardo de estatura e classe mediana, como dizia Belchior.
Ao longo dos anos em Portugal, aqui é acolá, após dar bom dia com meu português de açúcar num restaurante ou táxi, comecei a perceber que não agradava um tipo de português — aquele que não viaja por medo de avião, por fobia de mar, que acha que a terra é plana, duvida que algum compatriota seu tenha emigrado e que ficar no mesmo lugar é mais seguro, por achar que Leiria fica depois de Tokyo.
Para alguns destes sou um brasileiro de estimação, como no filme “Do the right thing”, de Spyke Lee, em que seu melhor amigo, Sal — um jovem imigrante italiano —, dizia: “You’re not black, you’re my best friend”. Da mesma forma, o talentoso amigo Dino D’Santiago é tido por parte da população como o preto de estimação da sociedade portuguesa.
Não há nenhum português que não tenha na família algum emigrante, um familiar que emigrou, heranças culturais africanas, mouras ou indígenas e, da mesma forma, nenhum brasileiro que não seja também africano ou português.
Somos o mesmo povo ligado pela língua de Camões e nobres proprietários da riqueza cultural de todas as latitudes que falam português.
Assimilar a cultura do outro, sem jamais se aculturar.