A Melindrinha, a Custódia dos rebuçados e o Zé da Luisinha também são gentes da minha terra
Marta Alves pegou na máquina fotográfica e ouviu as histórias de vida das pessoas de Prozelo, Arcos de Valdevez — no final, abraçou-as.
Nunca se sabe onde estas coisas começam, mas digamos que foi há coisa de um ano naquele instante em que Marta encontrou a senhora Lurdes a torcer a roupa no lavadouro de pedra rija. Ó gentes da minha terra é apenas isso — como o texto de Amália Rodrigues —, histórias e costumes de mulheres e de homens que vivem em Prozelo, Arcos de Valdevez, pessoas valentes e corajosas, resistentes e adoradas, pessoas felizes e nostálgicas que metem as mãos na água e na massa, pessoas de fé que faziam o pão e o vinho, que emigraram para terem o que têm, pessoas humildes e generosas e sobretudo mulheres de ferro que deram a vida a duas mãos cheias de filhos e que nunca deixaram que faltasse comida na mesa — e mesmo assim ela faltou. O projecto Ó gentes da minha terra mostra pessoas rijas como a pedra daquele lavadouro.
"A senhora Lurdes nunca soube o que é ter uma máquina de lavar em toda a sua vida. Mas diz-se feliz e afortunada por ter um cantinho ao pé de casa com água fresca e límpida", conta à Fugas Marta Alves, 30 anos, que começou a "tirar notas" mal chegou a casa. "Fotografei-a porque ninguém faz isso. E provavelmente quando ela desaparecer, desaparece o lavadouro. Abraçou-me logo e disse 'vamos lá'. As pessoas da terra são assim, muito calorosas..."
A senhora Lurdes despediu-se e foi estender as peças de roupa na corda que tem no quintal. As pessoas da sua terra "levaram vidas duras e sacrificadas" ("e muitas delas continuam a levar"), aprenderam a fazer um pouco de tudo, acarretavam, sachavam, foram embora da escola, emigraram, voltaram à terra e ainda estão por Prozelo, fazem parte da paisagem, fazem pão à moda antiga, como a senhora Ermelinda, Melindrinha, cenário preto do fogo, ou esticaram rebuçados horas a fio, como a tia Custódia dos rebuçados, que viveu órfã de pai e de mãe cedo, criou sete filhos praticamente sozinha e por pouco não completou cem anos de vida.
Quase sempre com a ajuda "cúmplice" da mãe Rosa da Quininha — este projecto vive tanto de alcunhas como de "abre aspas, fecha aspas" —, Marta foi ter com as pessoas de Prozelo e levou-as pela mão, conversou com elas, ouviu-as com tempo ("porque elas querem ser ouvidas") e fotografou-as ali mesmo quase sem se dar por ela. "Têm histórias muito bonitas, muito sofridas. Algumas falam de lágrimas nos olhos."
A mãe Rosa foi retratada agarrada a uma ovelha porque "sempre se dedicou arduamente à vida do campo e dos animais". "Desde os seis anos que acompanhou os meus avós e os irmãos nos trabalhos da lavoura", conta-nos Marta aquilo que a família a ela lhe contou — e que agora deixa num livro e na sua conta de Instagram. "Depois da escola, já sabia para onde ia. Acarretava comida para o gado, sachava o milho, semeava batatas... fazia tudo o que era preciso. Aos 23 anos casou-se com o homem mais amável e humilde, o meu pai Manuel, e teve três filhas. Hoje com 68 anos, continua com uma vivacidade admirável. Cheia de energia e com uma vontade de trabalhar incontestável, vive rodeada de animais felizes como esta ovelha."
Marta passou meses a ouvir e a gravar "vivências emocionantes e de grande valor" para chegar a casa de "coração cheio" e deixá-lo transbordar ao som do fado de Amália, de Mariza, Carminho, Marco Rodrigues, Camané, Gisela João, Ana Moura, Carlos do Carmo, Teresinha Landeiro. "O fado inspira-me", suspira. "As palavras saem-me de uma forma mais natural... Fado é tradição. Tudo estava ligado. O fado tinha que estar." No livro, está nos oito desenhos de José João Gomes, nas palavras dentro e fora das aspas e nas fotografias que tirou aos irmãos Cristóvão e Sofia, apaixonados pela agricultura ("Há poucos jovens que querem esta vida, mas nós vamos continuar a fazer o que nos faz feliz"), à senhora Gracinda e à senhora Glória, as Alminhas da Carreira, "irmãs e mulheres de muita fé", e à Graça e à Gracelinda, no balcão das únicas mercearias que resistem na terra ("Havia muita gente naquela altura, nada a ver com agora. Não havia os supermercados que há hoje! Muita coisa mudou!").
A autora do projecto, gestora de redes sociais, conhecia as pessoas todas ("as pessoas podiam não me conhecer tão bem a mim"), tem raízes no campo como as pessoas da terra. "Os meus avós são do campo, a minha mãe é do campo. Eu própria ia ajudar a vindimar. Essas coisas não desapareceram de mim", explica. "As pessoas mais velhas têm muita sabedoria e merecem ser valorizadas. E nunca o foram, não desta forma." Começou em 2023 "meio perdida". Não sabia muito bem que caminho seguir, mas sabia que gostava de pessoas.
Fotografou vinte e uma. O Zé da Luisinha, que fazia muitas pipas, carroças, canastros e demorava entre uma a duas semanas para fazer um carro de vacas ("Eu só fiz o exame da 3.ª classe e vim logo embora da escola. Era preciso ganhar dinheiro...sustentar a família. Fazíamos muitas pipas, carroças, canastros...agora acabou tudo, minha filha!"), o tio Tone e uma vida inteira a vindimar ("vida dura e escrava"), a avó Florinda e o neto Afonso no moinho de família restaurado ("Já posso morrer"), o Tone e a São do Pasto, que curam os males do corpo, a senhora Perfeita, que nos anos de 1980 ficou à frente da funerária do pai, a primeira da freguesia ("andávamos quilómetros e quilómetros com o caixão"), a Quininha, a Laidinha, o senhor Manuel e a senhora Maria, cheios de saudades dos velhos tempos. "Era tudo tão lindo, tanta gente no campo, tudo tão vivo... agora é uma tristeza."
As pessoas de Prozelo estarão sempre neste livro — como a avó Quininha, de luto agarrada a um entrançado de cebolas. "A recompensa maior é as pessoas virem ter comigo e abraçarem-me. Acho que nunca as vou esquecer."
Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que a recebi
Amália Rodrigues