Os últimos dias em Paris despertaram velhos debates. As polémicas fizeram lembrar antigas edições: a participação dos atletas da Rússia (ou da União Soviética do passado), o doping, o uso do hijab, a qualidade da alimentação, a falta de visibilidade dos desportos emergentes.
Um evento que junta os países do mundo inteiro, em tantas modalidades possíveis, é um sonho impossível de concretizar. É frágil, está facilmente sujeito a críticas, e só se organiza quando os astros da prosperidade se alinham: depois da Antiguidade, seria necessário esperar dezenas de séculos, até 1896, para que o projecto voltasse a ganhar asas. Já nos últimos 128 anos, a Segunda Guerra Mundial impediu que duas edições se realizassem.
Até mesmo os Jogos de 2020 foram duramente afectados pela pandemia, mas nem por isso deixaram de se realizar no ano seguinte, com admirável eficácia. E depois dos Jogos, a cidade de Tóquio passou a contar com vários edifícios notáveis, entre os quais o estádio olímpico, desenhado pelo arquitecto Kengo Kuma, que também desenhou a expansão do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.
Em França, já é antiga a discussão sobre o impacto dos grandes eventos no desenvolvimento. Vários académicos, de Paul Virilio a François Ascher, já dissertaram sobre a tendência para a eventologia, a obsessão com os grandes eventos que se sobrepor à resolução de problemas e aos planos de longo prazo.
Talvez por isso, a preparação dos Jogos Olímpicos de Paris tratou de deixar obras duradouras: a aldeia olímpica, numa das zonas mais problemáticas de toda a Île-de-France, destinar-se-á a residências universitárias. O rio Sena foi descontaminado, um esforço de vários anos que requer antecipação e planeamento e que o adiamento das provas de triatlo não deve colocar em causa. O escoamento das chuvas atípicas pelas ruas de Paris certamente influenciou a qualidade da água nestes dias, mas o legado deixado na descontaminação do rio vai ser aproveitado pelos parisienses nos anos que se seguem.
O esforço por fazer melhor, no que ao ambiente diz respeito, não se fica por aí. Várias modalidades olímpicas foram acolhidas em edifícios já existentes, que foram reabilitados. É o caso do pavilhão grande de Île-des-Vannes, um edifício de cobertura parabólica de 1971, que já resistiu ao teste do tempo, e que nestes Jogos Olímpicos ganhou nova luz, com uma intervenção assinada por Chatillon Architectes.
A marca que os Jogos Olímpicos deixam numa cidade é difícil de quantificar e certamente vai além dos indicadores anuais do desempenho económico. No caso de Paris, a cidade ganhou protagonismo: em vez de um espectáculo de abertura num estádio, as comitivas olímpicas desceram o rio Sena em barco, enquanto as margens se enchiam de luz e cor. Mais do que um ponto no mapa, fechado entre bancadas, a cerimónia de abertura ajudou a construir cidade, abrindo-se ao espaço público.
A abertura teve um impacto inevitável na vida dos parisienses, seja nos cortes de trânsito ou na preocupação com a segurança. Qualquer cidade que se dispõe a receber os Jogos Olímpicos vê-se sujeita a várias restrições. É portanto compreensível que o acesso ao espaço público estivesse condicionado, por mais inclusiva que fosse a cerimónia.
Em Paris, a transmissão da tocha fez-se com aparato cenográfico e culminou no espectacular acendimento do balão de ar quente, lembrando a sua invenção naquela cidade pelos irmãos Mongolfière, mas desta vez voando num mise-en-scène que poderia ter saído dos desenhos fantasiosos de Étienne-Louis Boulée.
No restante percurso das câmaras, houve uma tentativa de representar a cultura francesa na sua diversidade, num espectáculo concebido pelo encenador Thomas Jolly, o historiador Patrick Boucheron, a romancista Leïla Slimani, a cenógrafa Fanny Herrero e o dramaturgo Damien Gabriac. Numa curta-metragem, em que Zidane leva a tocha, há até uma representação do trânsito que parece saída de um filme de Jacques Tati.
Mais ponderada que a cerimónia de abertura foi a de encerramento, essa sim, confinada ao estádio. Em vários momentos, teve algo de um déjà-vu. Tom Cruise a descer da pala do Estádio, a lembrar a fingida aparição da Rainha de Inglaterra nos Jogos Olímpicos de 2012. Tom Cruise a sair do estádio de mota, depois do apagamento da tocha, que se irá reacender para Los Angeles 2028, uma cidade conhecida pelo uso do automóvel e pela largura das suas auto-estradas.
Mostraram os Jogos Olímpicos como, até com nuvens no céu, instabilidade política e críticas de várias direcções, foi possível fazer um acontecimento histórico, em que a festa de abertura saiu das bancadas do estádio e contagiou as ruas, como se as câmaras da televisão fizessem um percurso contínuo.
A imagem da tocha, que passa de mão em mão até chegar ao Jardim das Tuileries, mostra passagem de testemunho que é a construção da cidade e a transmissão do seu legado cultural. Menos arriscada foi a cerimónia de encerramento. Para Los Angeles 2028, fica a incógnita sobre a marca dos Jogos Olímpicos.