O luto tecnologicamente mediado

A experiência real de interação apresentada no documentário “Meeting you”, lançado em 2020, ao mesmo tempo que provoca emoção traz a discussão sobre os limites das novas tecnologias digitais.

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Este conteúdo poderá ser sensível para pessoas em processo de luto

Desde o surgimento das tecnologias digitais, as big tech avançaram significativamente no desenvolvimento de aplicativos voltados para a comunicação. Apenas com um clique, é possível falar com nossos amigos e familiares por videochamada, o que, de certa forma, atenua a tristeza, a saudade e a solidão, sobretudo, quando vivemos longe da família.

Mas há um aspecto que preferimos evitar falar, mas que cedo ou tarde nos deparamos ao longo da vida: a morte de um ente querido. Mesmo antes da pandemia da Covid-19, quando fomos forçados ao isolamento social, as tecnologias digitais avançaram consideravelmente no que diz respeito ao luto e à memorialização dos que já não estão mais entre nós. As transmissões de velórios, os memoriais online, os aplicativos de mensagens póstumas. Há uma infinidade de serviços digitais disponíveis, gratuitos e pagos, para nos manter mais próximos dos nossos mortos.

Ao mesmo tempo que as tecnologias apresentam soluções para nossas dores cotidianas, parece não haver limites. E o debate sobre questões éticas tem ganhado força na voz de pesquisadores que já falam na mudança de paradigmas sobre a morte e o luto e na emergência em discutirmos a relação entre as tecnologias digitais e a morte.

A emissora sul-coreana Munhwa Broadcasting Corporation (MBC) tornou possível um encontro entre Jang Ji-sung, mãe da pequena Na-yeon, que faleceu em 2016, aos 7 anos. Ao recriar, por meio da tecnologia de realidade virtual, a identidade digital da pequena Na-yeon, mãe e filha puderam celebrar o último aniversário juntas. No momento em que o diretor coloca o óculos RV no rosto da mãe, o corpo virtual de Na-yeon corre em direção a ela. O pai da criança e seus três irmãos assistem tudo através de um monitor.

Em lágrimas, ao ver a imagem no vestido cor-de-rosa favorita da filha, Jang diz a Na-yeon virtual: "Mamãe sentiu tanto sua falta, Na-yeon". A seguir, o filme é repleto de cenas emocionantes, troca de afetos, tentativas de toque, que são sobrepostas por uma imagem distorcida das mãos da mãe sobre o corpo virtual da criança. Todo o processo de reprodução da imagem, gestos, voz, trejeitos foi criado a partir de fotografias, vídeos e registos guardados pela família.

Para David Chalmers, filósofo australino, professor e pesquisador na Universidade de Nova Iorque, “as realidades virtuais são genuínas”. Segundo a Teoria da Consciência de Chalmers, a Na-yeon virtual é real e continua sendo a filha de Jang, mesmo sem o corpo biológico e com a identidade virtual criada a partir do uso de várias tecnologias. Após mais de sete minutos imersa entre a realidade física (no estúdio) e a realidade virtual (com o óculos RV), Jang pode se despedir da sua filha. “Ainda tenho coisas para fazer e, quando terminar, estarei com você Na-yeon... eu te amo”.

A experiência real de interação apresentada no documentário “Meeting you”, lançado em 2020, ao mesmo tempo que provoca emoção traz, também, a discussão sobre os limites das novas tecnologias digitais. Deixo algumas provocações. A imagem, a voz, os gestos de Na-yeon correspondiam de fato a sua personalidade antes da sua morte biológica? E sobre a mãe, quais são os impactos da experiência de reencontrar a sua filha em uma realidade completamente virtual? Qual as implicações éticas de se “reviver” uma pessoa falecida?

Um trecho do documentário está disponível no youtube.

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