Em 1624, dois jesuítas portugueses, o padre António de Andrade e o irmão Manuel Marques, vindos de Agra (Índia), e com o beneplácito do imperador mongol Jahangir, ultrapassando “desertos de neve”, chegam ao Tibete, onde julgavam ir encontrar o mítico reino do Cataio, um reduto de cristandade nos Himalaias. O destino foi Tsaparang, capital do reino tibetano de Guge, onde não encontraram cristãos mas budistas – a “confusão” tivera origem em “comerciantes muçulmanos que faziam comércio com os tibetanos já há muito tempo [e que] encontraram similitudes entre o culto budista e o cristão”, explica o historiador e investigador Joaquim Magalhães de Castro.
Certo é que se tornaram nos primeiros ocidentais a pisar o “tecto do mundo” (e darem notícias dele à Europa) – e 400 anos depois, a Pinto Lopes Viagens “regressa” a essa viagem numa “Expedição aos Himalaias (China, Tibete e Nepal) – Na senda dos jesuítas portugueses”, numa “viagem de autor” com Joaquim Magalhães de Castro, de 15 de Setembro a 3 de Outubro.
Não será, avisa o autor, um refazer dos passos dos dois jesuítas. “Isso implicaria uma viagem muito complicada, de muitos dias e com muitas limitações em termos geográficos” – desde logo, atravessar a fronteira seria impossível (o passo de Mana, rota original dos portugueses não está aberto a civis, e toda a zona é “muito restrita, com bases militares”). “Vamos fazer, no essencial, a parte mais importante, que é a zona de Tsaparang, onde viveu o padre e os seus companheiros”, explica, numa “expedição” que “é mais do que ao Tibete, inclui também uma saída pelo Nepal, na região dos Himalaias”.
Mas regressemos então a Abril de 1624, quando o padre António de Andrade foi detido pelas neves do passo de Mana – “perdeu um dedo e ficou quase cego”. Voltou atrás e, em Agosto, “quando as neves acalmaram”, atravessou o passo e chegou ao reino Guge, no Tibete ocidental, “na altura um dos mais poderosos reinos do Tibete” (nessa altura “havia aí muitos reinos rivais, em guerra permanente” e monarcas a “tentar controlar o poder crescente dos Lamas”). Conseguiu ganhar a confiança do soberano, construiu uma igreja e abriu uma missão católica. Durou apenas 20 anos, durante os quais houve um vaivém de padres que atravessavam os Himalaias e, nesse processo, abriram cinco rotas diferentes entre a Índia e o Tibete. O resultado desses anos de proselitismo foi estéril: “Houve ali algumas conversões e eu presumo que muitas delas foram por conveniência”, explica o historiador, “mas não há vestígios de cristãos naquela região”.
Tsaparang, Chaparangue em português, a capital de Guge “é actualmente uma ruína”. “Uma ruína fascinante”, sublinha Joaquim Magalhães de Castro, que se desdobra em degraus. “Há templos que ainda podem ser visitados [e o padre Andrade, que nunca admitiu a existência do budismo, apontou que estas “casas de oração” eram “como as nossas igrejas pintadas, pelos tectos e paredes”], e o palácio real, mas de tudo o resto não há vestígios” – incluindo da igreja portuguesa. É um dos pontos mais altos da viagem, assegura, sobretudo ao nascer do sol – os outros são o monte Kailash (6.711m), sagrado para quatro religiões e motivo de peregrinações (a kora em torno de Kailash demora um dia e purifica todos os pecados, 108 voltas garantem o nirvana nesta vida); e o lago de Manasarovar, entre montanhas com picos de mais de seis mil metros (diz-se que um mergulho envia o peregrino para o paraíso de Brama). O jesuíta Manoel Freyre, em 1717, terá sido o primeiro europeu nestes locais. Mas é uma viagem de 19 dias, não se esgota neste três momentos.
História e aventura
“É daquelas viagens que se faz uma vez na vida”, admite Joaquim Magalhães de Castro, que já esteve “15, 16 vezes no Tibete” desde o início dos anos de 1990 e é autor do livro Viagem ao Tecto do Mundo – O Tibete Desconhecido (Editorial Presença) e da série documental Himalaias – A Viagem dos Jesuítas Portugueses. “É um local extraordinário, onde ficamos rendidos perante a beleza com que nos confrontamos.” A viagem começa com uma passagem fugaz por Pequim, de onde se voa para Xining (uma das etapas da Rota da Seda) – daí, é o comboio o meio de transporte para chegar a Lhasa, a capital tibetana. “É uma forma diferente de entrar no Tibete, mais autêntica”, explica, “e, além da experiência, permite-nos também adaptar-nos à altitude, que é o principal problema”.
Em Lhasa, “lentamente”, a visita às principais atracções, do Palácio de Potala, a residência de Inverno dos Dalai Lamas entre 1649 e 1959 (e por onde terá passado o jesuíta Manoel Freyre, um dos primeiros europeus a chegar à “cidade santa”, em 1719), ao mais antigo templo do Tibete, Jorkhang, passando por ruas movimentadas (Barkhor, sem dúvida) e os mosteiros nos arredores.
A partir daqui, “começa a aventura” rumo ao Tibete Ocidental, a sua parte mais desconhecida. Lagos de água azul turquesa e glaciares, campos de cultivo e iaques, bandeiras oratórias a ondular, o local dos dez mil budas e a estupa mais alta do Tibete, bandos de antílopes, gazelas e, quem sabe, os cavalos de Prevelsky, origem pré-histórica, casario branco (e traços azuis e vermelhos sobre as janelas para proteger dos maus espíritos) e arco-íris geológicos, planícies áridas e lagos de sal.
Pelo meio, cidades e “encontros jesuíticos”: Gyantse, para muitos a mais bela cidade do Tibete e visitada pelos jesuítas Estevão Cacela e João Cabral, pioneiros europeus na região (foram, aliás, o primeiros a chegar ao Butão, e ainda hoje “o seu nome é ensinado aí nas escolas”); Shigtase, onde os mesmos padres estabeleceram uma missão católica (1627) que tão pouco teve sucesso. E se Cabral regressou à Índia, Cacela tentou chegar a Tsaparang morrendo pelo caminho – a sua sepultura é desconhecida, mas numa das cartas em que relata as suas descobertas, fala pela primeira vez ao mundo ocidental em Shambala, o lugar mítico do budismo tibetano, que viria a ser popularizado como Shangri-La, por James Hilton na obra Horizonte perdido.
A viagem termina na capital nepalesa, Katmandu, com visita aos seus locais mais icónicos. E mais memórias portuguesas: João Cabral passou por aqui em 1628 e Manoel Freyre viveu meio ano aqui em 1716.
Viagem de uma vida
O público-alvo desta viagem são “pessoas que se interessem pela história e também um bocadinho de espírito de aventura”, descreve Joaquim Magalhães de Castro. “Mas a graça da viagem é precisamente essa, não é como muitas outras”, considera – é por isso que lhe chama mesmo “expedição”. Serão milhares de quilómetros percorridos (“devia fazer as contas”, ironiza), mas numa viagem que “não classificaria com um grau de dificuldade alto” – afinal, não há trekkings, caminhadas, apenas uns “passeiozinhos”. E as estradas na Região Autónoma da China “agora são fantásticas” e todo o percurso seja acompanhado de dormidas em hotéis – “dos melhores em cada região” (e no Tibete Central inclui-se alojamento de várias estrelas).
Longe vão os tempos em que o historiador, cuja paixão é viajar e o Oriente o destino favorito, começou a visitar o Tibete, “viajando praticamente incógnito”. “Eram regiões muito remotas, para conhecer de forma pouco ou nada organizada, com muito improviso”. E foi numa dessas incursões que ouviu falar da história do padre Andrade – “já não me recordo exactamente quem o mencionou” – e ficou sempre com ideia de conhecer essa parte menos conhecida do Tibete.
Esta viagem é apenas o “capítulo I” de uma série que se propõe revisitar outros caminhos dos jesuítas portugueses nestas paragens. Seguir-se-ão os passos dos padres Francisco de Azevedo e João Garcia e de Estevão Cacela e João Cabral (neste caso, inevitavelmente, com Butão no centro da viagem). Mas, por enquanto, ainda há vagas para esta viagem que decorre entre 15 de Setembro e 3 de Outubro. O preço é 8295€ por pessoa em quarto duplo – a viagem de uma vida, sim. Mais informações no site da Pinto Lopes.