Geração de ouro: Portugal é campeão olímpico no ciclismo de pista

Há duas coisas que unem Iúri e Rui: ambos são de segundo plano na estrada, mas são, na pista, do melhor que há no mundo. Neste sábado, provaram-no em Paris, com uma medalha de ouro para Portugal.

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Rui Oliveira e Iuri Leitão celebram em Paris Matthew Childs / REUTERS
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Duas provas, duas medalhas. Iúri Leitão não veio a Paris brincar e, depois da prata do omnium, juntou-se a Rui Oliveira para garantirem a quarta medalha de Portugal nos Jogos Olímpicos. E esta não é uma qualquer, é de ouro. É o primeiro ouro português fora do atletismo.

O ouro na prova de madison do ciclismo de pista, feita a pares, mostrou que Portugal tem matéria-prima para se tornar uma potência da modalidade. Não, não tem representantes em todas as provas – e isso veda-lhe o estatuto de potência no presente –, mas os que tem são de primeira água – e isso vale-lhe a esperança de estatuto de potência no futuro.

O velódromo de Sangalhos, uma fábrica de medalhas que pode conhecer aqui, é, por sua vez, o local que dá argumentos a quem diz que basta apoios e investimento para Portugal prosperar no desporto. Leitão disse-o há dois dias e Pichardo disse-o ontem – embora o triplista seja, apesar de tudo, um privilegiado no contexto do projecto olímpico nacional, com ganhos que a maioria dos atletas nem sonha ter.

Mas vamos ao ciclismo. Iúri Leitão veio a Paris divertir-se – e isso é óbvio na postura leve e sorridente que tem em todos os momentos –, mas, na hora de trabalhar, encarou os Jogos Olímpicos como se a sua vida dependesse de uma medalha. Ou de duas. Onde tocou, fez milagres, como Midas, e é alguém que, por muito que goste da estrada, precisa da pista. O PÚBLICO falou com ele antes de Paris e pode conhecê-lo melhor.

Já Rui Oliveira é diferente. Tem tido uma carreira muito mais forte na estrada, fazendo parte das equipas da Emirates que conquistam provas importantes. O salário é outro, a companhia é outra, o profissionalismo é outro e as provas em que pode entrar são outras. Nada na “piscina dos grandes”, mesmo não sendo primeira aposta da UAE para liderar a equipa em prova alguma.

Apesar destas diferenças de contexto competitivo há duas coisas que unem Iúri e Rui: ambos são de segundo ou terceiro plano na estrada e ambos são, na pista, do melhor que há no mundo. Neste sábado, provaram-no. Bateram Itália e Dinamarca, com 55 pontos, contra 47 e 41 dos rivais europeus.

Não eram favoritos

Este resultado tem um contexto diferente dos outros bons momentos que Portugal já teve em Paris. Leitão no omnium era um óbvio candidato às medalhas, por muito que quisesse gerir expectativas a falar de top 8.

Para Pichardo, tudo o que não fosse ouro seria derrota – dizemo-lo nós e disse-o o próprio, esvaziando a retórica de quem acha que todos os resultados olímpicos devem ser glorificados sem espírito crítico e análise de contexto. Para Patrícia Sampaio, a medalha foi uma total surpresa por parte de quem muito se superou e mostrou que há talento no judo além de Jorge Fonseca. Já Gabriel Albuquerque era candidato ao pódio, mas, aos 19 anos, não pôde desdenhar um diploma.

Mas o madison, para Leitão e Oliveira, era diferente de todos estes casos. Era das provas nas quais não se poderia pedir medalha, mas ficar fora do top 8 também saberia a pouco. A dupla portuguesa estava ali em “terra de ninguém”, algo patente até nas principais casas de apostas, que vacilavam entre o oitavo e o nono lugares na previsão de favoritismo de Portugal.

Enganaram-se. Estes dois são de ouro.

Como aconteceu

Rui e Iúri chegaram muito cedo ao velódromo de Saint-Quentin-en-Yvelines​, nos arredores de Paris. Sentaram-se na box de Portugal, que fica bem no centro do recinto e numa zona bem quente, tal é a ineficácia do ar condicionado no velódromo.

Também por isso Rui Oliveira esteve boa parte do tempo de tronco nu, enquanto Iúri, mais vestido, se recostou na cadeira, como se estivesse na praia de Moledo, em Viana do Castelo, a fitar o mar.

A dada altura, abraçou por completo a sua praia de Moledo e cedeu ao tronco nu. Não havia como estar vestido, a não ser por obrigação.

Falemos de ciclismo e esta prova não é difícil de explicar. São 200 voltas à pista, sendo que há sprints com pontos a cada dez voltas. Em cada dupla, um ciclista está a competir e o outro está inactivo no topo da pista, podendo trocar sempre que quiserem.

Começou Iúri Leitão como corredor activo na dupla portuguesa e a primeira rendição não foi famosa, com uma pequena hesitação da dupla. Os portugueses fizeram uma primeira parte de prova discreta, na cauda do grupo, sem capacidade para irem aos sprints.

O motivo pareceu ser provocado pela posição ir na traseira do grupo, que faz os ciclistas apanharem as rendições adversárias à frente, obrigando-os a desvios que impedem a trajectória “limpa” e obrigam a esforço adicional.

Antes do quarto sprint, uma rendição na parte superior da pista, “às escondidas” de toda a gente, permitiu a Leitão atacar no ângulo morto dos adversários e seguir sozinho para conquistar uma volta. Isso permitiu ir buscar os cinco pontos do sprint e acabou por haver um esforço conjunto com a dupla espanhola. Não estava fácil ir buscar pontos de volta, mas os de sprint deixavam Leitão e Iúri na liderança da prova.

A corrida acalmou nessa fase, com pelotão compacto durante algumas voltas e com quase todos a recuperarem energias do arranque intenso.

Mais à frente, a dupla italiana, em posição de ouro, ainda conseguiu ir buscar 20 pontos de volta de avanço, aproveitando um erro táctico de várias equipas que encabeçavam o pelotão e escolheram rendições segundos depois do ataque italiano.

Um ataque franco-espanhol pouco depois criou nos portugueses a sensação de que aquela movimentação não poderia ser perdida, parando a aventura dessas duplas. Muito boa leitura de corrida de Rui Oliveira, nesse caso.

Estávamos a meio da prova, com Portugal no sétimo lugar, posição que baixou com o passar das voltas. A dupla portuguesa parecia não ter “peito” suficiente para ataques – teve pelo menos duas oportunidades, com posição na cabeça do grupo. De resto, rolou quase sempre na traseira do pelotão.

A 45 voltas do fim, a corrida portuguesa poderia definir-se: se a fuga com Espanha, Dinamarca e Itália tivesse sucesso, as medalhas ficariam à mercê. Sem sucesso, teria sido, provavelmente, desgaste decisivo.

Houve aliança com a Nova Zelândia e Japão logo a seguir, numa fase de prova completamente louca, sem pelotão definido, e os companheiros de aventura distraíram-se num segundo, após uma rendição japonesa algo trapalhona, deixando Portugal seguir sozinho.

Era ali ou não era mais. Com volta de avanço, era medalha. Sem volta, dificilmente seria. E deu mesmo volta. Portugal em posição de prata. E logo a seguir de ouro, com sprint bonificado.

Era previsível? Não. Foi bonito? Foi. E quem disse que eles a meio da prova não pareciam ter força para ataques? Não foi neste texto que leram de certeza.

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