Um mar de histórias, na antiga praia da Favita

A rivalidade entre caxineiros e poveiros não os impediu de erguer um complexo de oficinas no Porto da Póvoa. Espaços cheios de gente e de histórias que deram nova vida à antiga praia da Favita.

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Anna Costa
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Os estaleiros Irmãos Viana são presença com décadas na antiga praia da Favita, faixa litoral no Norte de Vila do Conde encostada à Póvoa de Varzim e integrada, na verdade, no porto de pesca poveiro. As pedras da Favita, que deram nome ao areal, desapareceram sob o betão do quebra-mar, e a antiga enseada que abrigava catraias e pequenos gasoleiros encolheu. Tornou-se terra firme onde se mantém em actividade uma das últimas empresas de construção naval de madeira do país, junto a uma escola de pesca, um varadouro para embarcações de recreio e um recém-construído complexo de 115 armazéns de apoio à frota de pesca das duas cidades, que é uma das maiores do país.

Estou na Poça da Barca, lugar para muitos desconhecido, mas que os locais, ou os que deles descendem, guardam no coração. Não sei se alguma vez acamparam por aqui guerreiros vikings, como alguém um dia aventou, bastando-se na toponímia e no aspecto nórdico, espadaúdo e loiro, de alguns habitantes. Mas que a gente que aqui vive é raça de se bater pela vida, mar afora ou terra adentro, contra ventos e marés, isso posso garantir, pelo meio século que levo a viver entre eles.

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A praia da Favita desapareceu, tornou-se terra firme, onde nasceu um complexo de 115 armazéns de apoio à frota de pesca das duas cidades. Anna Costa

Nome que me enche a boca de memórias, a Poça da Barca foi a extensão natural da antiga colmeia de pescadores poveiros, que era a maior do país, no final do século XIX. Nessa época, o progresso já reclamava a praia para os banhistas e, nascidos em casas sobrelotadas, com mais filhos do que pão, homens e mulheres do mar pegaram nas redes e fizeram-se à vida. Milhares atravessaram o Atlântico, fixando-se no Rio de Janeiro e noutras cidades do Brasil. Muitos outros limitaram-se a atravessar o rio do fedor, nome popular de um pequeno regato que separava a Póvoa de Vila do Conde.

Poça da Barca e Caxinas

Empurrados por essa nortada, os meus avós maternos ficaram-se por aqui, a metros da praia da Favita, a metros da Póvoa dos pais deles, cidade com a qual, na verdade, muitos faviteiros se identificam ainda hoje. Seguindo mais para sul, os meus bisavós e avós paternos e muitas outras famílias vararam os barcos na enseada das Caxinas. Lugar – apenas isso, um lugar – que com o tempo se tornou mais conhecido do que algumas cidades.

Nos versos de José Régio, poeta que aqui “parava a olhar de longe” estas “estátuas de bronze a andar”, Caxinas e Poça da Barca eram iguais. As suas gentes partilham de facto apelidos e alcunhas, trazem o sal na boca e o mar nos costados. Mas cultivaram, em terra, rivalidades que se exprimiam de formas e nos momentos mais inesperados.

Identidades à flor da pele

Algures na primeira metade do século passado, o capitão de um navio da pesca do bacalhau tentava organizar o regresso a bordo dos homens, perante o aproximar de uma tempestade, chamando-os em grupos por comunidade de pertença. Deixou os poveiros para o fim, mas quando ordenou que subissem a bordo, reparou que uns quantos permaneceram no mar, aguardando outra chamada. “Nós não somos poveiros. Somos caxineiros”, terá respondido Manuel Fangueiro, o Fangueiro Velho, pescador imortalizado numa fotografia em frente à praia das Caxinas. O gesto de orgulho atravessou o Atlântico, e até ficou nos livros.

César Nunes, um antigo pescador de 65 anos que se reformou do mar e se dedica, agora, a fazer redes, é testemunha de uma desconfiança mútua, que não sabe explicar. No jogo da afirmação de identidades, que até no namoro entre os jovens se intrometia, apartou-os o futebol, certamente. As partidas entre Rio Ave e Varzim já foram autênticas peixeiradas, no campo, nas bancadas e nos cafés. Separadas por poucos dias, em Agosto, as “majestosas” procissões dos pescadores, a do Senhor dos Navegantes, nas Caxinas, e da Senhora da Assunção, na Póvoa, são levadas com outro respeito. Ainda assim, não falta quem conte andores e figurantes, quem compare as oferendas entregues pelos barcos, e até o fogo-de-artifício, para atirar, a brincar ou mais a sério, à cara dos vizinhos.

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Na última década passou a ser normal ouvir-se falar uma língua estranha, a dos indonésios que há anos vêm substituindo os pescadores locais. Encontro-os no estaleiro dos irmãos Viana, ajudando a pintar o Lua Nova, que está na carreira, para a manutenção anual. Anna Costa

É um orgulho bairrista, exacerbado pelo marulhar de vozes que, mesmo em terra, parecem lutar contra o estrondo da vaga. Cada um de nós procura, de mil formas, distinguir-se dos outros – e “a competição, se for sadia, é boa, faz-nos avançar”, dir-me-á o pescador Manuel Marques, 44 anos, líder de uma das duas associações de armadores que representam o sector em Vila do Conde e na Póvoa. Mas quer este caxineiro, quer o poveiro João Leite, líder da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar (APMSHM), admitem que, quando nos viramos para a pesca, esta separação de águas não faz sentido.

Vizinhança à beira-mar

A vida cria costuras, onde antes havia separação. Em terra e não só. João Leite ainda se recorda de ver na enseada do Porto da Póvoa uma área vazia entre os gasoleiros que os caxineiros ancoraram na favita, e os barcos dos poveiros, amarrados mais para norte. Mas isso acabou. Neste mesmo porto, os barcos de pesca de uns e de outros estão, há muito, lado a lado nos cais de amarração junto ao molhe norte, na Póvoa. E no aterro no interior do molhe sul, ou seja, já em Vila do Conde, um complexo de armazéns junta-os a todos no trabalho de terra que, até 2022, se fazia em garagens e oficinas dispersas pelas ruas das duas cidades.

São 115 espaços, para outros tantos barcos, parte considerável de uma frota de pesca local e costeira (polivalente e do cerco) que continua a ser uma das maiores do país, embora sofra, como todo o sector, ameaças múltiplas, entre elas a falta de mão-de-obra. A obra foi inaugurada pouco mais de um ano depois da morte do fundador da APMSHM e seu principal impulsionador, José Festas, que a associação homenageou, dando o seu nome à praça principal do complexo.

Para lá do som do rádio, que em quase todas estas oficinas embala os gestos repetitivos de quem prepara ou repara os aparelhos de pesca, na última década passou a ser normal ouvir-se uma língua estranha, a dos indonésios que há anos vêm substituindo os pescadores locais, atraídos para a pesca noutros países ou, no caso dos mais novos, para outras profissões. Encontro-os no armazém de Manuel Marques, ajudando o patrão a separar as cordas de redes velhas, em fim de vida; encontro-os no estaleiro dos irmãos Viana, ajudando a pintar o Lua Nova, que está na carreira, para a manutenção anual. Encontrá-los-á quem aqui vier, pelas ruas da cidade: presença amistosa, quase sempre de bicicleta, ou de telemóvel na mão olhando o horizonte na marginal, conversando com alguém do outro lado do mundo.

Tal como no acontece no mar, onde, perante algum perigo os pescadores se entreajudam, na Favita, entre ruas evocando o Leixão, a Ínsua, a Oliveira e outras pedras desta costa, a proximidade também gera solidariedades e apoio em algumas tarefas a pedir mais mãos. Lino Pontes, responsável por um dos armazéns, destaca esse sentido de vizinhança entre homens e mulheres que aqui trabalham. Destaca até novas amizades entre gente que nem se conhecia.

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Espalhados por toda a costa

Estamos todos perto uns dos outros aqui, é um facto. Contudo, esta proximidade em terra contrasta com a dispersão geográfica da frota, no mar. Por tradição familiar, Manuel Marques até trabalha, como alguns outros, ao largo da Póvoa, fazendo porto aqui, a metros de casa. Mas a maioria deles espalha-se por toda a costa, de norte a sul, e até ao largo das ilhas. Encontrámo-los em quase todos os portos, herdeiros, nesse espírito aventureiro, dos antepassados poveiros, que pescavam e descarregavam o peixe um pouco por todo o lado. Um carácter intrépido que lhes causou, às vezes, grandes dissabores.

Pescador reformado e fadista, António Maciel levou há décadas o barco da família para a Nazaré, onde diz que chegou a ter a companhia de muitos conterrâneos, e nunca mais quis outro porto, mesmo quando os demais se mudaram para outras paragens. O mestre do Avô Ricardo é, há alguns anos, o filho de António, José Augusto, que aos 32 anos terminou a carreira no futebol, para, contra a vontade do pai, se tornar pescador.

Há outros ex-futebolistas por aqui. O mais famoso deles, Fábio Coentrão, é armador de vários barcos, um dos quais, o Cidade Celestial, se destaca pela dimensão no cais do porto, por estes dias.

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Num sector em que os filhos deixaram de seguir as pisadas dos pais, há quem anteveja neste corte geracional o fim de um ciclo, como João Leite, líder da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar, que procurou dar outro futuro aos filhos. Anna Costa

Num sector em que os filhos deixaram de seguir, automaticamente, as pisadas dos pais, há quem anteveja neste corte geracional o fim de um ciclo, como João Leite, que procurou dar outro futuro aos filhos. Ainda assim, não faltam, para lá destes portões, histórias surpreendentes, como a de um dos rapazes de António Palmeira, que fez o curso de gestão de empresas e se tornou depois pescador, liderando, com o irmão, um dos barcos do cerco desta frota.

Praia onde no século XIX cresceu o herói salva-vidas dos poveiros, o Cego do Maio, a Favita já não existe. Tornou-se coisa outra, lugar de encontro, fonte inesgotável de histórias, partilhadas por poveiros, faviteiros e caxineiros, aqui ou nos mares onde os encontrarmos. Parto com a certeza de que tenho de vir aqui mais vezes. Rotinados nos gestos, estes homens e mulheres conseguem entralhar, em simultâneo, uma rede e uma conversa. Cartografam-me as intenções, com duas ou três perguntas, e abrem-se ainda mais, quando lhes digo de quem sou, quando me situam na rede de pertenças em que estamos emaranhados. Então, oferecem-me um saber que não tenho e que desejo. Partilham palavras novas que um dia hão-de ter, num texto qualquer, o seu mar.

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