Margaritas, machismo e má pontuação
A distinção entre a Tragédia Grega e as novelas mexicanas está na qualidade da oratória, mas há sempre medo, amor e morte.
Não se mistura leite com laranjas, não se mistura vinho branco com vinho tinto, não se mistura Estado com religião, a pílula com antibiótico, karaoke com reuniões profissionais… Há misturas que não se fazem! Refeições mexicanas não se misturam com romances mal resolvidos, romances mal resolvidos não se misturam com convicções ideológicas, e convicções ideológicas e romances mal resolvidos não se misturam com Margaritas. É arriscado.
O restaurante mexicano tem mais cores do que o meu cérebro é capaz de assimilar. Não se mistura roxo com laranja, vermelho, amarelo e azul na mesma decoração, só mesmo num restaurante de proprietários portugueses que frequentaram em tempos um resort no México e se julgam capazes de reproduzir a gastronomia bafejada pelo Pacífico.
Mal entro, tropeço num vaso com um cato gigante, tropeço nos teus olhos, tropeço na surpresa, desequilibro-me nas minhas sandálias altas, desta é que eu não estava à espera, mas avanço sem vacilar, desinibida, os meus olhos tropeçam num retrato da Frida Kahlo, ou antes, de um clone mascarado de Frida Kahlo, mas com as sobrancelhas aparadas, os lábios carnudos e o nariz estreito, como uma modelo Instagram gerada pela inteligência artificial, e dirijo-me à mesa, deste é que eu não estava à… avanço, sem terminar a frase…
… fazemos o jogo das cadeiras, não nos sentamos lado a lado, simulamos distância, mas artificial, os teus olhos espreitam-me, camuflados num ângulo morto, os teus olhos sempre de costas — peritos na visão periférica, e sentamo-nos apenas a um lugar de distância, separados por umas reticências…
fico de frente para a Frida, apetecia-me atirar guacamole para o retrato, imagino, como os espectadores atiravam tomates podres para o palco, antigamente, no tempo do teatro isabelino, quando não gostavam da cena e se faziam valer da crítica artística por via do arremesso alimentar, que muitos considerariam demasiado radical, ou más maneiras, mas eu considero honestidade, o tipo de honestidade que é capaz de colocar um ponto final ao espetáculo,
e entre nós, foi um ponto final? interrogo-me… enquanto o meu raciocínio segue sem pontuação, sem pausas, sem pontos finais, só vírgulas, e eu e a minha má pontuação, as minhas vírgulas nos sítios errados, os fins nos momentos errados,
pedem-se margaritas para a mesa, mas o que me apetecia era mesmo uma tequila, pura, virgem, nestas coisas sou uma puritana, um shot de tequila é que era, com os dentes a morder a lima, com a língua no sal, mas retraio-me, porque não quero parecer radical, não quero ser demasiado, controlo-me, contenho-me, as entradas ainda nem sequer foram servidas, tequila para aperitivo parece desespero, e o desespero é muito mal visto, ninguém gosta de um desperado, pior, de uma desperada,
“venha a margarita!”,
sorvo a margarita, sôfrega, parece um refresco, é só sumo, não bate, mais um trago, e outro, e outro, sem parar, está calor, são nove da noite e ainda é de dia, o meu ritmo circadiano está ao rubro, o meu metabolismo está ao rubro, atua como se eu estivesse na Tour de France, na prova de montanha, numa bicicleta sem travões, com os braços depilados, as pernas depiladas, e toda eu brilho como o camisola amarela diante da meta, com a margarita amarela diante da cara, como uma transformista debaixo dos holofotes com a maquilhagem a ameaçar o desmoronamento, a ocupar demasiado espaço no palco, os teus olhos brilham, a minha palhinha esmiúça o fundo do copo, acabou-se o líquido, e peço uma segunda margarita, sem hesitações:
“mais uma margarita!”
a minha voz solta-se dissonante, não coincide com os lábios, como nas novelas mexicanas dobradas em brasileiro, tu olhas-me de soslaio, desconfiado da minha destreza de movimentos, a Frida no retrato olha-me de soslaio, desconfio que a Frida verdadeira iria detestar ver-se assim retratada, cheia de ácido hialurónico e botox, a minha boca ri-se, eu acompanho a minha boca, diligente, cheia de energia, fundamentalista da boa disposição, as crianças à mesa desviam os olhos da Patrulha Pata nos telemóveis, fazem aquele esgar de “a amiga da mãe está a ser esquisita outra vez!”,
culpo as hormonas, culpo o tempo, culpo a má circulação, culpo o picante, culpo o ciclo menstrual, culpo o meu útero que me comprime as ancas contra a cadeira, contra o selim, culpo a cadeira, culpo o calor, culpo-te a ti, culpado!, mas não digo nada, afinal não estamos em tribunal, duvido que nas audiências se sirvam nachos,
“mais uma margarita!”,
levanto-me, para mudar de posição, desculpo-me, mas é para reparar se reparaste, o meu vestido sobe, vermelho, as minhas coxas exclamam, dois pontos de exclamação debaixo da minha anca redonda, os teus olhos tropeçam diretamente na minha pele, e
olho para interior das pernas para confirmar que estão limpas, esta rotina cansativa de sangrar mensalmente, penso nas atletas femininas, nas ciclistas, nas maratonistas, como conseguirão suportar a carga da fecundidade, sinto uma tontura nos joelhos, sinto uma tontura no pensamento, um flashback, nós os dois, mas amanhã, como no filme Regresso ao Futuro, “ o empregado parece o Michael J. Fox!!” equilibro-me nas exclamações, mas mal, sento-me de novo, cruzo as pernas, fecho aspas, a tua retina estremece entre os meus joelhos, lá se vai a tua visão periférica — denunciado pela espontaneidade ocular (!)
engoles o orgulho com uma trinca no chili, tenso com o excesso de confiança do vestido, baralhado com os meus movimentos férteis, e então abres um parenteses, lanças uma frase, ou antes, um golpe de lucha libre mascarado de frase, um tema familiar entre nós, como quem pisca os olhos, cúmplice, sem ninguém ver, para serenares a retina,
e abres o ringue, matador: “Os homens estão em queda, as mulheres estão a ocupar o espaço do masculino…” desta é que eu não estava à espera,
tenho outro flashback, como numa narrativa acrobática, regresso ao passado, vejo-nos sentados na esplanada, ao sol, vejo os teus olhos pousados na minha pele, mas sem disfarces, e oiço a tua voz em voz off: “Ana, se os homens não servem para ser os provedores, para que é que servem então?”, e lembro-me de sentir apanhada de surpresa, encadeada, talvez fosse do sol, talvez fosse do álcool, “Ana, se uma mulher ganha mais do que o homem, para que é que precisa dele?”, e eu, baralhada, com a interrogação, com a frase, com o tempo da frase, com a época, errada, um regresso ao passado, com os meus olhos a camuflar a desilusão a espreitar de um angulo morto, a visão periférica do amor…
regresso ao futuro, à mesa, voltas à carga:
o ataque ao feminino, machismo com enchilhadas, com sofismas, com novas habilidades, na retórica, requintadas, com extra picante, com boas maneiras, sinto as margaritas a baterem, afinal tinham tequila, a bater, nas têmporas, sinto a mostarda subir-me ao nariz, o chili a subir-me ao nariz, e então lanço-me, na tua direção, lanço os braços, com as mãos em leque, lanço a boca, pronta a rasgar os argumentos, com os dentes, o meu rosto acende-se, como uma caveira colorida, como uma Bacante (!)
“afastem os copos!” alguém brinca,
lembro-me do retrato da Frida verdadeira, deitada na cama, rodeada de fetos e úteros, o retrato da sua dor, sobre do aborto que sofreu nos Estados Unidos, lembro-me que o Supremo Tribunal do Estado do Arizona decidiu reverter a lei do aborto, e volta à jurisdição do século XIX que proíbe o aborto em quaisquer circunstâncias, exceto se a vida da mulher estiver em risco,
regresso ao passado…
penso na época vitoriana, pós isabelina, em que as mulheres se casavam mais jovens para fomentar a prosperidade económica, e em que os homens dominavam, tanto em espaços públicos, como em privado e as mulheres deviam ser submissas e dedicar-se em exclusivo à manutenção do lar e à educação dos filhos, à moral e aos bons costumes… “se os homens não servem para ser os provedores, para que é que servem então?”,
lembro-me daquele título: Os Homens que Odeiam as Mulheres, o livro foi lançado no Brasil com o título Os Homens que Não Amavam as Mulheres, mas em Portugal é Os Homens que Odeiam as Mulheres! pergunto-me qual será a versão mexicana? Os Homens que Temem as Mulheres?
Penso que o medo é o clone do amor, a gémea má, como nas novelas, o rastilho do ódio, mafioso, a mascarar-se como um luchador musculado, que nunca mostra o rosto, o medo dissimulado de sintoma, silencioso, antes de adoecer a alma,
antes de matar,
de assassinar,
como na tragédia grega,
a distinção entre a Tragédia Grega e as novelas mexicanas está na qualidade da oratória, mas há sempre medo, amor e morte.
Penso tudo isto, mas:
quando estamos embriagados achamos sempre que nos equilibramos melhor do que realmente somos capazes, a cabeça presunçosa não se apodera do desfalque que o álcool tem o poder de desferir no corpo, mas sobretudo na oratória, e o pensamento na minha cabeça anuncia-se muito mais articulado do que a minha boca consegue executar,
a minha língua… enrola-se… trôpega, interrompo-me, tu olhas-me, trocista, as minha mãos tropeçam, sinceras com a minha embriaguez, e derrubo a Margarita, honesta,
ponto final.
A gémea falsa da Frida olha-me, condescendente, paternalista…
limito-me a olhar para a mesa, cheia de marcas de copos misturadas umas nas outras, redondas como pequenos óvulos cheios de líquido fértil, e penso que o medo está sempre misturado com o amor, mas não me arrisco a dizer,
porque margaritas não se misturam com romances mal resolvidos, e muito menos com convicções ideológicas, e convicções ideológicas e romances mal resolvidos não se misturam com Margaritas. É arriscado.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990 e regressa a 19 de Agosto.