O Coração Ainda Bate. O trampolim
Inês Meneses e o poder das palavras, esse isco para a sedução.
Nunca subi a uma árvore, nunca desci por um caminho íngreme para uma praia inacessível, nunca escalei nada, a não ser o meu interior (onde todos encontramos inúmeros obstáculos). Fui sempre avessa a tudo o que implicava desafiar o meu corpo. Na verdade, eu nunca achei que tinha um corpo. Eu vivo dentro da minha cabeça. Acontece-me acordar e ver braços e pernas que me pertencem. Nem me deram a oportunidade de escolher o modelo que queria.
No ciclo houve um ano, do tempo em que me dedicava mais ao estudo, em que percebi que ia tirar nota cinco a tudo, tudo menos, claro está, a Educação Física. Eu era um três sofrido, um suficiente menos. As desculpas que inventava para não ficar com as pernas encastradas no pequeno trampolim (suava só de o ver…) eram inesgotáveis. Eu era nova, mas tinha consciência de que o professor era um bom samaritano. Uma alma compassiva com o meu infortúnio físico. No fim do ano, não querendo destoar da pauta, deu-me também cinco. Tenho uma dívida e uma dúvida de gratidão com ele: a dúvida é se ele não me terá dado a nota não apenas para eu ter uma pauta invejável, mas para não parecer que a falha era dele, o único a não conseguir que eu fosse um cinco. Obrigada professor, onde quer que esteja. Eu lembro-me de si. E do trampolim.
Foi sempre pela cabeça que cheguei aos meus destinos; muitas vezes, pessoas. Cansei-me de as cativar pelo meu alegado interesse. Acreditem que isto, a dada altura, cansa. Hoje quero é rir-me do trampolim e do que o presente me traz, mas, durante muito tempo, e falo também dessa matéria oblíqua chamada sedução, tive que mostrar que lia, ouvia e via. Não me podiam ignorar. Não resultou sempre.
Pergunte-se a uma mulher que característica mais aprecia num homem e ela dirá: o humor. Faça-se a mesma pergunta ao homem e ele dirá, sem pensar: as pernas. Depois vai lembrar-se de que as pernas não são uma característica.
Eu convivi com muitos e bons homens. Homens cheios de histórias e de vida, outros mais imberbes e precários emocionalmente. Uns mais levados pelas pernas, outros que preferiam o todo (estes mais raros). A verdade é que, perante um homem que me interessasse, eu tinha ali uma espécie de trampolim para ultrapassar. Um penhasco para descer. Uma árvore para subir. Como é que eu vou fazer isto, pensava eu? Pela cabeça, claro. Foram sempre as palavras a levaram-me até às pessoas. Até aos amores. Mesmo muitos dos homens que preferiam pernas (como no frango) acabaram presos pela minha lábia – lábia é expressão que pouco se usa. É bom ter boca, lábios e sobretudo lábia.
Hoje em dia, muitos trampolins depois, rio-me das palavras que gastei, algumas tão desnecessariamente. Há gente que não vale uma palavra, quanto mais uma tentativa de sedução. Às vezes estava a ser tão feliz no meu discurso com o outro que pensava: “que pena isto não me ocorrer só para mim”. Mas se são os outros que nos validam, claro que também será com eles que vamos gastar as palavras. Quando o stock se esgota, sabemos que facilmente o podemos renovar. As palavras são uma torrente maravilhosa que nunca findará, até porque a Inteligência Artificial está açambarcar tudo. Ainda sou eu a escrever esta crónica. A Inteligência Artificial não sabe o que é suar ao ver o pequeno trampolim…
A idade traz coisas mesmo boas: ajuda a olhar pelo retrovisor e ponderar e pensar outra vez e escolher melhor. Ou não escolher nada. Mais vale escolher uma mão cheia de nada do que herdar um punhado de erros só para termos qualquer coisa entre os dedos.
Cá estou eu com a cabeça cheia de palavras, agora aliviada por não as gastar em vão. Em relação à atividade física, mantenho-me um suficiente menos, mas com o humor a prevalecer sobre tudo isto. O humor em vez das pernas.
O coração ainda bate.