Biblioteca Municipal José Pedroso de Carvalho: As Estações da Vida
“Nas ‘Terras de Poyares’, (…) adentramo-nos numa história esquecida de labutas e fainas que se perde nos tempos.”
“Verão, outono, inverno, primavera.../ Ciclo infinito,/ Como o olhar de qualquer pessoa cansada/ Que possui uma história guardada,/ História que se perde nas palavras que flutuam no ar/ Pois já ninguém liga ao passado/ E isso não devia acontecer, estão a ver?/ Metade do mundo, perdido!”
Joana Mafalda Simões Prado, As Estações da Vida
Sozinho, com medo, sem saber o que dizer,
Pois há receio e qualquer coisa pode acontecer...
Temos famílias separadas,
Pessoas isoladas, do mundo em geral,
E agora pergunto eu: já não há confiança?
A amizade agora é inveja,
Paz significa guerra,
E eu estou perdida também...
Num mundo triste, invadido pela infelicidade
Ou as palavras mudaram e eu não fui avisada... (…)
O poema As Estações da Vida, do qual publiquei um excerto, foi incluído na coletânea Concurso Literário do Conto e Poesia de Vila Nova de Poiares, que reúne os autores premiados entre 2014 e 2021. Esta obra, composta por dois volumes, foi sugerida por Paula Cação, diretora da Biblioteca José Pedroso de Carvalho, no contexto da Road Trip Literária.
Joana Mafalda Simões Prado, residente em Poiares, venceu a edição de 2019 do concurso na categoria de crianças e jovens. Joana tinha 12 anos quando escreveu o poema As Estações da Vida. Doze anos! Toda esta profundidade, desilusão e inquietação. Não deveria isto fazer-nos refletir?
Em 2018, na categoria de adultos, a vencedora foi Vera Lúcia Duarte Carvalho, com o conto Vale a pena viver com o coração sempre em chamas. No segundo capítulo, intitulado “Quando morrer e tiver todo o tempo do mundo para mim”, Vera, nascida no Rio de Janeiro em 1963, mas que cresceu em Lisboa e vive em Vila Nova de Poiares desde 1984, escreveu:
“Estou com vontade de escrever sem parar e não sei se isto será bom ou mau. Parece que surgiu dentro de mim uma torrente tão grande de palavras que precisam de sair. (...) Não sei se vos acontece serem de repente assaltados com uma Magnum 45 em forma de palavras. Por isso, ando sempre com cadernos na mala e com um peso enorme aos ombros. Uma mulher entretém-se com muita coisa, (...), entretenho-me com letras, palavras, roupa para passar a ferro, louça para lavar, filhos para escutar e aconselhar, planos e planificações de formações, ideias, projetos, telefonemas, calçado, compras de supermercado, (...) há coisas que não escrevo, são minhas. São os meus segredos e não os quero partilhar com ninguém.”
Todos temos segredos. E as terras também.
Sobre a mesa que serviu de apoio à minha conversa com Paula Cação, encontravam-se vários livros. Um deles tinha um formato grande, capa em tons de vermelho e encadernação cuidada. O título era Legados da História de Poyares – Histórias dos Paços do Concelho, da autoria de Pedro Carvalho Santos, historiador, publicado em janeiro deste ano pelo Município de Poiares. Abri-o. Na dedicatória, lê-se “Ao Povo de Vila Nova de Poiares: Aos antigos Poyaristas, como Identidade e Memória (…)”.
Poyaristas?
A explicação surgiu pela boca do autor: “São designações antigas. Quando nasceu o concelho, em 1837, Poyares escrevia-se com ‘y’ e os habitantes eram poyaristas, não poiarenses”. O historiador aproveitou para apresentar a sua obra: “Não há muita informação editada sobre a história de Poiares, que é relativamente recente, com cerca de 200 anos. Ainda assim, se contasse tudo, teríamos mais de mil páginas e ninguém iria ler, as pessoas leem pouco hoje em dia. Por isso, optei por abordar o tema de uma forma mais breve, com alguns toques para despertar a curiosidade, como aconteceu consigo com a referência aos poyaristas.”
Deixo um trecho para despertar a curiosidade: “Nas ‘Terras de Poyares’, história olvidada e sonegada, onde moinhos de vento e azenhas transformaram cereal em farinha, onde fornos da cal construíram paisagem Humana, onde as pedras brutas da serra deram lugar a mós, cantarias e arte, onde as terras argilosas pela mão do homem moldaram peças de barro, ancestralmente cozidas em soengas, originando o preto característico, adentramo-nos numa história esquecida de labutas e fainas que se perde nos tempos.”
Foi também do passado que Paula Cação começou por falar:
— Quando era pequena, depois de brincarmos no jardim, costumávamos ir à biblioteca buscar os últimos livros dos Cinco e dos Sete. Era um ritual da minha geração, irmos à biblioteca no final do dia, pois era apenas nessa altura que estava aberta.
— E nessa altura não imaginava que viria trabalhar para a biblioteca.
— Não, foi por acaso. Mas gosto muito do que faço. Tem sido um desafio desde o início. Quando eu vim para aqui, há 28 anos, as pessoas não sabiam para que servia uma biblioteca. E ainda hoje são muitas as que nem sequer sabem onde fica. Não há hábitos de leitura… Por exemplo, o edifício onde está a biblioteca é um espaço polivalente, fazem-se aqui cursos de formação, há espetáculos, enfim, há várias atividades e, às vezes, quando estão à espera, as pessoas aproximam-se da porta a medo e perguntam se podem entrar e esperar. Com certeza que podem entrar! E podem utilizar à vontade, têm livros, têm computadores!
— Mas vem pouca gente, não é?
— Muito pouca. E isso custa-me muito porque esta biblioteca é como um filho que eu criei. Houve uma altura em que estava sempre cheia. Entre 1996 e o início dos anos 2000, esses quatro, cinco anos, foram de uma atividade enorme. Havia no concelho 15 ou 16 escolas, cada aldeiazinha tinha uma escola primária. Agora temos três centros escolares, ou seja, as crianças do concelho estão todas reunidas em três locais. E nós tínhamos muito mais crianças. Então, criámos um programa em que todos os alunos das escolas vinham ciclicamente à biblioteca. Tínhamos atividades de leitura e temáticas para trabalhar, foram realmente anos muito dinâmicos. Mas a verdade é que também os horários na altura eram diferentes. Hoje há uma carga letiva muito grande. As crianças estão na escola das 8h30 às 17h30/18h; estão fechadas dentro das escolas o dia todo, não têm tempo para sair da escola e irem à biblioteca. Nessa altura, não, a biblioteca era uma ocupação dos tempos livres. Eu tinha miúdos e miúdas cujos pais sabiam que eles saíam da escola e iam para a biblioteca. Alguns deram-me alguns cabelos brancos. Hoje, há alguns que já têm filhos e, quando passam por mim na rua, dizem ‘olha a senhora da biblioteca’. Fico feliz com isso.
Tanto Paula como Pedro referiram que as pessoas leem muito pouco, mas há exceções.
Após esta curta troca de impressões, enquanto tirava algumas fotografias, descobri entre as estantes o senhor Fernando Santos Neves.
— Gosto muito de ler. É o meu passatempo número um, não tenho outro. Estou reformado há muitos anos.
— Quantos anos tem?
— 81.
— O que fazia?
— Trabalhava na hotelaria, estive 42 anos em Lisboa a servir em casamentos. E também trabalhei no campo, trabalhei muito no campo.
— E sempre leu?
— Sempre, sempre tive a mania de ler. Já quando estava em Lisboa. Pronto, eu tinha um cafezito e comprava o jornal para os clientes e para mim. Sempre foi uma coisa de que gostei.
— E como é o seu dia a dia agora?
— Ora, estar em casa a ler e fazer caminhadas.
— Quantos livros lê por mês, mais ou menos?
— À volta de seis. Eu venho cá duas vezes por mês chatear a Dra. Paula, que me ajuda a escolher os livros.
— A mim não me chateia, nada, pelo contrário – intervém, Paula Cação. – Olhe, João, este senhor é o maior leitor aqui da nossa biblioteca! – acrescenta.
— E o que gosta mais de ler, senhor Fernando?
— Livros de ação, é o que me entretém mais. Olhe, é uma coisa de que gosto, pronto.
Finalizo com os versos finais do poema As Estações da Vida:
“(…) Mas nós não podemos pensar que tudo é mau…
Não!
Palavra que muitos não conseguem dizer,
Outros ler ou escrever,
Devemos aprender o essencial,
E devemos também saber:
Que toda a gente, sem exceção,
Deve ser feliz pois todos têm coração,
Amar o próximo sem rancor,
Sem inveja, com amor!
Todos devem viver a vida que conseguem imaginar,
Pois com esforço e trabalho,
Conseguirão lá chegar,
Combatendo o ensurdecedor barulho
Do silêncio que dentro de nós se pode encontrar.”
Amar, trabalhar arduamente, ser otimista.
12 anos, tanta sabedoria.
Obrigado pelo conselho, Joana.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990