Angeiras, onde o tempo se demora em frente ao mar
Venho à praia de Angeiras, em Matosinhos, à procura de amizades geradas entre comunidades da beira-mar. Não sou daqui, mas uma marca antiga e uma memória, fazem-me sentir em casa.
Na praia de Angeiras segue lento o Verão. Lento e fresco.
Neste enclave de pescadores em Lavra, vila rural de Matosinhos, há quase sempre mais calor ao pé da grelha de um restaurante que no areal, onde a nortada se diverte a eriçar a água e a pele de um punhado de banhistas. Aqui há decerto mais calor nas vozes dos homens e mulheres do mar, que preparam a próxima pescaria no mesmo espaço em que outros descansam.
Regresso a Angeiras à procura de amigos, à procura de gente que teima em traçar rumos novos para quem pesca. Chego perguntando também pelos velhos, que não se cansam de ir ao mar, e que fazem de cada maré um atestado de vida.
Neste portinho antigo, onde o tempo se espraia devagar nas ruas e nos rostos, a proximidade marca o ritmo dos dias e tornou-se uma marca do lugar. É ela que me traz aqui, também. E quando chego…
Há muito que não via um bando de crianças à solta na praia: as mais velhas tomando conta das mais novas; os adultos, de longe, confiando nelas e na calmaria da baixa-mar. Graças ao molhe inaugurado há três anos, o lago, como os de Angeiras chamam ao canal de entrada dos barcos, ganhou mais ar de lago. Empurrada de norte para sul, a vaga morre antes de chegar ali, respeitando aquela inocência infantil, na qual me revejo.
Viro-me para as casas de mar a nascente, aguarelas multicolores pintadas em cima da duna, e imagino a minha mãe chamando por mim: fim de tarde, e o meu nome atirado na voz dela até à língua da maré. Mas ainda não é hora de jantar. O sol vai alto, e, desta vez, posso ficar mais um pouco.
Não sou daqui, mas, agasalhado por esta cena, sinto-me em casa. Mar adentro, no dorso do molhe, os meus olhos ainda alcançam facilmente as minhas Caxinas, para norte, e os prédios altos da Póvoa de Varzim, a bordejar a enseada dos meus antepassados. Para Sul está Leça, com as chaminés da antiga refinaria e Leixões a marcar a paisagem.
Em tempos, as grandes traineiras do cerco e as fábricas de conservas atraíram àquele grande porto milhares de pessoas. E deram-nos, aos que nascemos nas comunidades piscatórias a norte e a sul, amigos, tios, primos, pais ou avós de Matosinhos. Na sua largueza, o Atlântico parece apartar-nos. No entanto, une mais do que imaginamos. Se me apresento como filho de pescador, demora pouco para que nos enredemos numa conversa.
“Entre, entre, sente-se.” Encontro Aurélio e Albina Seabra na casa de mar da família. O interior, semi-enterrado na areia, é um sem fim de aparelhos de pesca que só ele sabe onde estão. Andam pelos 70 os dois, e Aurélio continua a ir ao mar, no Sr.ª dos Navegantes. Não tem quem lhe siga os passos. Fico a saber que têm um neto a jogar futsal no ADCR Caxinas, clube da minha terra, cujo lema, Sangue do Mar, lhes assenta bem.
Trago de lá uma pergunta que ressoa há muito na minha cabeça.
— Sr. Aurélio, sabe dizer-me alguma coisa sobre uma pedra que tem o meu nome, a pedra do Abel.
— “Ah, a do Abel…”
Desfia-me uma curta lista de pedras, pesqueiros, na costa: a Pretendida, o Invejoso, a do Abel também, ali defronte do castro de São Paio, a norte daqui. Fico mais curioso. Explico-lhe que partilho o nome com o meu pai, o meu avô e o meu bisavô, e que um dia, criança, o meu pai foi ali levado pelo pai dele, que lhe queria mostrar esse pesqueiro, baptizado pelo meu bisavô, Abel Francisco Coentrão. Seria assim?
Ele não sabia dizer. As pedras ganham nomes de diversas maneiras, e não faltam homens com esse nome, por aqui. A três metros de nós, lá fora, Joaquim Pereira, outro pescador septuagenário, conta-me outra versão. Explica-me o que sabe, enquanto prepara uma cesta de palangre, em pé, na embarcação Golfinho. Talvez aquele fosse o pesqueiro habitual de um Abel lavrador/pescador – eram assim os antigos habitantes desta praia. Havia alguém com esse nome, numa casa ali defronte.
Consoante os lugares, a história muda. Talvez a da pedra do Abel não seja como contaram ao meu pai. Ou talvez seja como todos a contam. O que me importa aqui é a certeza de que este mar à nossa frente tem uma geografia própria, enriquecida pela cultura de cada comunidade e por vezes diferente da que vem nas cartas náuticas.
A pesca, para os antigos, tinha segredos que hoje são difíceis de guardar, e aqueles lugares de boas pescarias eram marcados a partir de pontos em terra: um pinheiro — foi-se!; uma casa — quem a demoliu? Aurélio Seabra costumava ir para os lados de Espinho, ao robalo, e fazia marcas com uma das torres de iluminação do antigo estádio do SC Espinho, também deitado abaixo, e de uma casa “em chalé”. Que será feito dela? Hoje, o GPS inutilizou este conhecimento. Não precisamos de saber como chegar, pois uma máquina nos indicará a posição e o caminho.
Saber-saber
Em contraponto, aquelas eram marcas de um tempo em que a paisagem tinha outros significados. Eram marcas de uma cultura, de um saber-saber e de um saber-fazer que se vai perdendo, com o envelhecimento desta gente.
A frota de Angeiras, pouco mais de uma dúzia de barcos, operando com dois, às vezes três homens, enfrenta a mesma dificuldade de recrutamento de outras comunidades. São os próprios pais os primeiros a afastar os filhos do mar, embora nem sempre o consigam. Mãe de dois rapazes por aqui conhecidos como os “caxineiros”, a minha conterrânea Leontina Cruz, bem tentou. O mar, como me recorda o marido, Manuel Esteves, já lhe tinha levado o pai.
De nada adiantou. De mal com a escola, o filho mais novo descobriu na pesca uma vocação — e não o castigo a que a mãe o tentou submeter. Trabalha com o pai há quase uma década, dando a Tina noites sem descanso, de vigília, quando os tem no mar. O irmão de Bruno, Rui, que fez formação em mecatrónica, reagiu a um esgotamento, por excesso de trabalho, voltando-se também para o mar. Tornou-se apanhador de percebes, e não quer outra vida.
Manuel Esteves tem, assim, quem lhe siga a arte, e sente orgulho nos rapazes. Mas nesta mesma praia, tal como Aurélio Seabra, e outros, também Joaquim Pereira, metido há mais de meio século nesta vida, não conseguiu que o filho seguisse o mesmo rumo. Dava-se mal com os efeitos da ondulação, e evitou, a todo o custo, ter de passar o dia-a-dia num barco. Já a filha, explica-me, seria uma grande camarada, não fosse o caso de “ser mulher”, pois adora pescar.
Mas nem filha, nem filho. A bordo do Golfinho, Quim Papas acabou a trabalhar com o genro, um rapaz terrenho, de uma freguesia vizinha, a quem a vida trocou as voltas. Experiente manobrador de máquinas de terraplanagem, José Fernando Correia foi afectado, há quase vinte anos, por uma lesão grave na coluna. Enquanto recuperava, o mar, ali diante dos olhos, galgou-lhe o destino, e tornou-se pescador. Já leva 18 anos nisto e um naufrágio que não o deitou abaixo, antes o fez perseverar. “Há que resistir”, dir-me-á enquanto faz uma reparação de rotina no barco.
Mas José Fernando Correia, que venceu aquele naufrágio agarrado à vontade de rever o filho, não se limita a resistir. É o actual líder da Associação Mútua dos Armadores de Angeiras, e tem vindo a tentar valorizar de forma sustentável o peixe, a cultura e o património da comunidade que o adoptou. Enquanto me mostra, num telemóvel, fotografias do projecto Seashore, um primeiro passo nesse caminho, o antigo manobrador de máquinas, hoje com 44 anos, desfia um rol de ideias que mais cedo ou mais tarde, acredita, hão-de dar àquela costa. “Não somos nem piores nem melhores que os outros. Podemos aprender”, ouvi-o dizer por duas vezes.
Numa terra onde quase todos os homens e mulheres do mar estão atados uns aos outros por laços familiares, o passeio marítimo de Angeiras é uma calçada cosmopolita a beijar o areal. Pescadores, peregrinos de Santiago, comensais que vêm de longe em busca de peixe fresco na grelha encontram-se nestas ruelas estreitas a dois passos do mar. O lugar abriu-se ao mundo, e José Fernando recusa fechar a comunidade numa concha.
Num lugar com tanta história, onde já os romanos produziam conservas de peixe e garum, ninguém se imagina num futuro sem pesca, por poucos que sejam os que ainda querem pescar. Saio, por isso, de Angeiras feliz por ver como Bruno, Rui, José Fernando, Nuno Araújo e outros se atiraram, sem medo, ao mar.
Um dia destes volto aqui, para que um deles me leve até à pedra do Abel, pesqueiro que me liga aos meus antepassados, e que me faz sentir em casa, nesta praia onde o tempo se deixa apanhar.