Biblioteca Municipal de Paredes: Plantemo-la aqui — aqui
Ao percorrer as salas da biblioteca, tentei imaginar o corrupio de um dia de aulas com raparigas a entrarem numa sala e rapazes na oposta. O edifício atual da biblioteca remonta ao século XIX.
"Homens que são como lugares mal situados | Homens que são como casas saqueadas | Que são como sítios fora dos mapas | Como pedras fora do chão | Como crianças órfãs | Homens sem fuso horário | Homens agitados sem bússola onde repousem"
Daniel Faria, Poesia
Deixar-nos à mercê das escolhas de outros não tem de ser necessariamente mau. O convite para que fossem os bibliotecários a escolher os livros que eu leria nesta road-trip literária permitiu-me descobrir inúmeros autores de que nunca tinha ouvido falar. E que boas surpresas tive!
Beatriz Meireles, vereadora da Cultura na Câmara Municipal de Paredes, e Maria Antónia Silva, coordenadora da Unidade de Património Cultural, Biblioteca e Arquivo, recomendaram-me a leitura de Poesia, uma colectânea que reúne toda a obra poética de Daniel Faria, poeta nascido em Baltar, Paredes, a 10 de abril de 1971.
Na abertura desta crónica, partilhei o primeiro verso do poema "Homens que são como lugares mal situados". Ei-lo completo:
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar
Uma magnífica reflexão sobre a condição humana. Do meu ponto de vista, Daniel Faria fala-nos, através de metáforas como a dos "espaços abandonados" e "crianças desamparadas", da solidão e do desencontro dos homens na sociedade moderna. Apreciei particularmente a frase "pedras fora do chão" como representação da desconexão e desajuste, bem como a luta por encontrar um lugar de pertença e significado no mundo.
É a minha visão. Naturalmente, cada pessoa poderá encontrar outras interpretações e ressonâncias nestas palavras.
Foi Beatriz Meireles que sugeriu o poema "Homens que são como lugares mal situados", enquanto conversávamos, percebi a razão da escolha.
— Como é que a Câmara Municipal de Paredes olha para a biblioteca?
— Atribuímos enorme importância à nossa biblioteca e à cultura em geral. Para nós, os livros transformam as pessoas e a humanidade, e nós queremos cidadãos mais informados, cidadãos que não aceitam as notícias sem poderem fazer uma análise crítica. É por isso que hoje, mais do que nunca, entendemos que é fundamental atrair as pessoas para as atividades da biblioteca, pois só assim conseguimos criar e desenvolver a consciência emancipatória e crítica dos nossos munícipes.
— Dê-me alguns exemplos.
— Foi através da biblioteca que se começou a construir um projeto maior de cultura para Paredes, nomeadamente com os nossos pequenos encontros mensais a que chamámos Café Literário, que já vai no sexto ano de realização. Trazemos autores locais e, agora, também autores de outros lugares de Portugal, para nos falarem das suas obras, do que fazem e de outros assuntos que consideramos relevantes. Aí, surgiram ideias e fervilharam críticas, tanto negativas como positivas, que estão a ajudar a construir a cultura de Paredes. Além disso, conseguimos criar um grupo de leitores que todas as semanas prepara leituras e dá sugestões.
— Pode falar um pouco sobre o que estão a preparar em torno de Daniel Faria?
— Sim, neste momento estamos a reconstruir um edifício na freguesia de Baltar, não muito longe da casa do poeta, onde vamos criar a Casa-Museu Daniel Faria e Centro Promocional da Literacia e Desenvolvimento Pessoal, associada ao trabalho que a biblioteca desenvolve. Para nós, é sobretudo a humanidade que pode fazer a diferença. E atualmente, com tudo o que já sabemos sobre saúde mental, isso torna-se ainda mais importante. A poesia de Daniel Faria tem um papel importante nesse trabalho. Foi por isso que lhe sugerimos esta antologia, que tem sido para nós um manual, uma espécie de bíblia que nos tem amparado em todos os trabalhos culturais que temos desenvolvido. Neste momento, por exemplo, temos um plano de ação para comunidades desfavorecidas que está a trabalhar Daniel Faria.
— E ainda têm esta revista cultural incrível, o Orpheu Paredes.
— São 160 pessoas a colaborar, entre trabalhadores da câmara, escritores, poetas, investigadores, etc., e, quando a lançamos, são 500 pessoas a assistir! Aqui encontra tudo o que fizemos durante o ano e publicamos os textos premiados do nosso Prémio Literário António Mendes Moreira. É no contexto do café literário que nasce esta revista, que já é procurada em todo o país e também no Brasil, Angola e noutros países lusófonos, o que nos deixa muito honrados.
Ao percorrer as salas da Biblioteca Municipal de Paredes, tentei imaginar o corrupio de um dia de aulas com raparigas a entrarem numa sala e rapazes na oposta. O edifício atual da biblioteca remonta ao século XIX, mais precisamente a 1866, quando funcionava como Escola Conde de Ferreira. Naquela altura, e até meados do século XX, ainda se fazia a separação conforme o género, prática que se manteve até meados do século passado.
Encontrei Beatriz Alves, paredense e aluna do 11.º ano, a estudar numa antiga sala de aula. A alguns metros, um rapaz via uns vídeos num tablet. Partilhavam a sala. Cada um no seu canto, respeitando a prática de antigamente.
— Só vens para aqui para estudar, Beatriz? E ler, não? —, perguntei.
— Só para estudar. Para mim, é mais fácil manter a concentração aqui do que em casa. Não costumo ler… —, respondeu Beatriz.
— Não tens curiosidade em ler? Mesmo estando num lugar onde há tantos livros? Não te estou a julgar, lê quem quer.
— Não, não me chama a atenção. Só leio os da escola. E a maioria dos meus colegas também é assim. Acho que os jovens agora recorrem mais à Internet para ver coisas e saber coisas.
— E o telemóvel, usas muito? Quanto tempo por dia? Isso tem aí um contador, vê lá a média. Todos o utilizamos excessivamente, não te estou a julgar —, perguntei.
— Pois… 6h30 de utilização diária… —, admitiu Beatriz.
Voltei-me para ir ao encontro do rapaz, mas já desaparecera.
No decorrer desta viagem, para cada jovem que encontrei sem hábitos de leitura, encontrei outro que os tinha. Se tiver de fazer um balanço, fico-me pelo meio-termo. No caso de Beatriz Alves, a opção de não ler nunca será uma consequência da falta de oferta ou de empenho da Biblioteca Municipal de Paredes, como me explicou Maria Antónia Silva.
"A aquisição de livros é uma área na qual estamos a investir bastante. A nossa biblioteca tem muitos livros, ultrapassando já os 40 mil, e continuamos a adquirir, dentro das possibilidades do orçamento. Além disso, há as edições da própria câmara e os patrocínios para edições de autores. Uma particularidade interessante é que os livros adquiridos para a biblioteca principal são também adquiridos para as bibliotecas escolares. Assim, os alunos têm acesso às obras nas suas próprias escolas. Embora possam visitar a biblioteca municipal, o Concelho de Paredes é vasto em termos geográficos, com muitos agrupamentos escolares distribuídos por todo o município. Por vezes, é difícil para um jovem ou criança deslocar-se desde uma freguesia distante até à biblioteca municipal. Ao comprar livros para as bibliotecas escolares, estamos a promover a leitura e a cumprir a nossa missão de levar informação e cultura aos mais jovens."
Finalizo com mais um poema do meu novo poeta preferido:
Magoa ver a magnólia cair. Acredita.
O relâmpago vem.
Sobre ela. A tempestade.
As plantas são tão frágeis como as cabanas dos homens.
Somos muito frágeis os dois neste poema
Com o relâmpago, a cabana, com a magnólia aos ombros
Sem nenhum terreno pulmonar intacto
Para depois nos olharmos um de nós dizer
Plantemo-la aqui – aqui
É o meu pulso, a minha boca
É a retina com que procuras, é a madeira da porta
Com que te fechas em casa. Prometo-te
Eu nunca vou fechar os olhos
As mãos.
Retiro uma frase do contexto: "Plantemo-la aqui – aqui."
Daniel Faria morreu a 9 de junho de 1999, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga, onde há uma magnólia. "A magnólia é também um imaginário muito associado a Daniel Faria e nós vamos herdar um rebento para plantar na Casa-Museu", partilhou Beatriz Meireles.
Plantar humanidade e cultura. Que conceito tão bonito.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990