Ouviu a explosão da cozinha africana?
Chefs luso-africanos e donos de restaurantes também não ouviram. A gastronomia africana em Portugal está nas tachadas incógnitas dos subúrbios ou em restaurantes discretos no centro das cidades.
A terça-feira ao almoço parece domingo à tarde, porque há violas e microfones, cachupa ou moamba de galinha. Dança-se música cabo-verdiana para fazer o intervalo no trabalho rotineiro de Lisboa. Não há centro mais central: este almoço dançante acontece na Avenida da Liberdade todas as terças e quintas, uma evasão da realidade que sabe a férias para uns e o regresso à ilha natal para outros.
Apesar da centralidade, para a maioria dos lisboetas a Associação Caboverdeana será um segredo, tal como o seu frango com molho de amendoim ou o caldo de peixe. Está no oitavo andar de um grande edifício de escritórios, sem montra para a rua que possa ser chamariz, tem raras referências na imprensa ou nas redes sociais. Apesar do óbvio laço histórico e da grande presença em Portugal de africanos lusófonos e dos seus descendentes, esta gastronomia passa despercebida ao país. No alto de um prédio, numa montra discreta e na periferia, os restaurantes africanos mantêm-se um nicho para saudosistas ou curiosos, mas querem modernizar-se e explodir.
A segunda cozinha em Portugal
“A maior parte das pessoas não sabe que pode comer autêntica comida cabo-verdiana no centro de Lisboa a um bom preço”, diz André Magalhães sobre o restaurante da Associação Caboverdeana (Rua Duque de Palmela, 2, 8.° andar, Avenida da Liberdade) e acrescenta exemplos: “O Tambarina [tasca cabo-verdiana no Cais do Sodré] podia ser uma cantina de sucesso, mas… tem dias. Vão lá uns jovens esquerdolas tugas que têm a mania que são étnicos, mas podia ser uma referência, só que não está na moda, não há interesse mediático.”
Alargamos este roteiro por Lisboa iniciado pelo chef e investigador André Magalhães. Em São Bento há o By Milocas, no Centro Cultural de Cabo Verde e, no alto da Mouraria, o São Cristóvão é uma tasca de cachupa e caril de galinha com amendoim onde a Tia Mento canta músicas de Cabo Verde sempre que os amigos aparecem de viola.
Na colina de Alfama está o Roda Viva, onde o músico, artesão e antropólogo Octávio Chamba se especializa no Sul de Moçambique. Em duas salas sóbrias das Avenidas Novas há mais Moçambique — no Oliveira’s e no Chiveve, que junta as muitas influências da gastronomia da Beira. Na Praça do Chile, instalou-se o Fox Coffee Rei da Cachupa, com espírito de renovação, a fazer cachupa para todos: vegetariana, de atum, de polvo. Somemos outra dezena de restaurantes onde comer é relativamente barato e temos a face mais visível da “segunda cozinha mais praticada em Portugal”, como lhe chama André Magalhães.
“Há muito mais lugares do que imaginamos, se os críticos [gastronómicos] quiserem perder o medo e se meterem na linha de Sintra, nos subúrbios, nos limites de Benfica, vão encontrar autêntica cozinha africana”. Na Cova da Moura, em Massamá, em Odivelas ou nos Olivais, as culturas dos imigrantes dos países africanos lusófonos perpetuam-se em pequenos restaurantes, bares ou cafés — às vezes com porta para a rua, outras na cave de um velho centro comercial decadente. Mantém-se vivo o caldo de mancarra da Guiné-Bissau, cachupas cabo-verdianas de raiz, feijoadas são-tomenses.
Quando tem saudades das suas origens angolanas ou das viagens a São Tomé, André Magalhães sai no Senhor Roubado, em Odivelas, entra num café e pede petiscos africanos que temperam uma cerveja ao final da tarde — torresmos, moreia frita. Raramente se cruza com portugueses, que se mantêm afastados de bairros conhecidos pela imigração. “Esse factor racista condiciona o sucesso e a hipótese dessas pessoas poderem fazer um pouco mais”, diz.
Bruno Oliveira, chef luso-angolano, é contundente: “Há um gueto. Em nossas casas comemos o peito alto [prato angolano de vaca], moamba, mas fora adaptamo-nos ao que os outros comem — parece que há uma certa vergonha.” Com uma carreira em grandes cadeias hoteleiras, como a Epic Sana, Sheraton ou Marriott, e a trabalhar actualmente no Hotel Valverde Lisboa, anseia por levar os produtos e tradições africanas para o fine dining ou, pelo menos, por ver aparecer um “grande restaurante africano em Lisboa”: “Há um nicho que conhece e gosta da cozinha africana, mas não há um boom.”
Mais do que uma cachupa fina
Se em Portugal não se ouve o boom, no mesmo fuso horário fala-se em tendência gastronómica. Em Londres, há bistrôs e restaurantes a repensar receitas e ingredientes africanos. Em casas como o Ikoyi usam-se pratos nigerianos como referência para outros mais depurados, de cores vibrantes: a banana-pão com framboesas desidratadas parece uma peça de design e tornou-se icónica. Está na carta no Ikoyi, em diferentes versões, desde a abertura, em 2017. Era, na época, um restaurante mal compreendido em Piccadilly Circus — hoje tem duas estrelas Michelin.
No início do ano a tendência gastronómica londrina ganhou novos argumentos: o Akoko e o Chishuru ganharam uma estrela Michelin, dois restaurantes focados nas cozinhas da África Ocidental. A nigeriana Adejoké Bakare, chef do Chishuru, tornou-se a primeira mulher negra a receber esta distinção no Reino Unido.
A diferença é que “Londres não é branco, nem os brancos são brancos”, comenta Marcelo Rodrigues, cozinheiro de ascendência cabo-verdiana actualmente a trabalhar no restaurante Jolene, nessa cidade. “Londres é tão multicultural que as pequenas comunidades se entreajudam, têm expressão e o público acolhe melhor novas ideias”, resume Marcelo que, durante a pandemia, se juntou à mãe para criarem um serviço de entrega de cachupa.
O Angela’s Canteen ainda existe, mas Marcelo não se deixou agarrar ao país por um negócio familiar em Portugal. “Eu gostava de fazer parte de uma nova geração de cozinheiros que trabalha a cozinha africana, mas também tenho medo. [Os PALOP] são países recentes comparados com as ex-colónias britânicas. Ainda há muito trauma, fomos sempre ignorados e silenciados e hoje somos ignorantes sobre a nossa cultura, isso limita a nossa evolução. É claro que eu podia fazer uma cachupa fina, mas a questão é tão maior do que isso”, afirma Marcelo, lembrando as tentativas goradas de encontrar, em registos e bibliotecas, informações sobre a ancestralidade da própria família ou receitas cabo-verdianas.
As cozinhas contemporâneas que se inspiram em receituários tradicionais são um caminho para a valorização dessa cultura gastronómica de partida. Falta investimento financeiro para dar este passo, afirma André Magalhães. “Em Londres, os ricos ganeses ou nigerianos têm brio em mostrar a sua cultura e apostar nos jovens. Infelizmente os bilionários angolanos não investem nos jovens”, exemplifica, acrescentando que quem aposta num restaurante de comida africana em Portugal tem espírito de sobrevivência. “Precisamos de alguém que acredite na divulgação da cozinha africana sem pressa de ganhar dinheiro com isso”, resume o chef Bruno Oliveira.
A ideia de pagar caro por uma refeição africana repele os clientes — mais uma ideia racista. “Sempre associamos as cachupas e as moambas a comidas baratas de encher a barriga no fim de uma noitada”, considera André Magalhães. Da relação colonial só o frango assado e as chamuças se generalizaram em Portugal, trazidos pelos portugueses ditos retornados. “Os brancos colonos não comiam a comida dos pretos, isso também contribui para esta situação que hoje temos”, conclui.
Em 2022, o tema do Congresso Nacional dos Cozinheiros (CNC) foi “Conexão Africana” e a gastronomia dos países africanos foi central em comunicações, showcookings e debates. As Edições do Gosto (que organizam o CNC) insistiram no assunto e criaram o Curso Livre de Cozinha, que procurava aprofundar este saber, divulgar projectos e jovens cozinheiros africanos. Nessas aulas descontraídas e com muitas tachadas à mistura, o público era aquilo a que se chama “o meio”. O objectivo era que o meio desse conta do que andava a perder.
“A ideia do curso era precisamente abrir as portas, mas as forças vivas da gastronomia nacional não abordaram os jovens que foram lá — os que foram contactados não foram fazer cozinha africana. O mercado valoriza a sua competência profissional, mas não a sua competência criativa e étnica”, conclui André Magalhães, que fez parte da organização.
O Masterchef tem de trabalhar mais
No boutique hotel Valverde, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, Bruno Oliveira intui os limites daquilo com que pode ou não surpreender os clientes norte-americanos ou franceses. “Às vezes, num menu de almoço, posso pôr uma moqueca, que já é sonante — é brasileiro, já foi aceite —, mas não posso fazer um calulu, ninguém vai pedir e, no final do dia, o que conta é o dinheiro em caixa”, diz. Nas cozinhas por onde passou, nas conversas com colegas cabo-verdianos, guineenses, sente a vontade comum de ver a gastronomia dos seus países dar um passo em frente, como aconteceu com outras. “É muito fácil encontrar molho de soja, molho teriyaki — mas quem conhece o sabor do óleo de palma?”
A diversidade de sabor e texturas é grande e desconhecida. Carla Pinto, proprietária, chef e anfitriã do Morabeza Boavista, no Porto (Rua de Nossa Sra. de Fátima, 495, Boavista), prefere não falar dos condimentos antes de o cliente provar. “Quando vão a um italiano ou a um japonês, as pessoas sabem ao que vão. Aqui é sempre uma descoberta, as pessoas não estão familiarizadas”, conta.
Carla Pinto é filha de uma cabo-verdiana e de um moçambicano. Nascida no Porto nos anos de 1980, aprendeu a cultura com uma família grande e farta em bons cozinheiros, mas na escola era a única africana, na rua também. A Tia Orlanda, moçambicana em Portugal há mais de 40 anos, é a mais antiga referência na restauração da cidade — hoje em Campanhã. Foi neste cenário que Carla Pinto quis dar uma visão ampla da cultura africana e abriu o Morabeza Boavista com pratos de várias gastronomias. “Quis enriquecer esta viagem com pratos dos PALOP e tentar também uma fusão com a cozinha portuguesa”, conta. Um exemplo é o arroz à moçambicano, que põe condimentos deste país num aparentemente inofensivo arroz de marisco.
A abertura em 2019 foi penosa. “Pensei que fosse mais fácil, por causa do braço histórico entre Portugal e África. Mas o desconhecimento cria dúvida e desconforto. Há muita coisa que tem de ser explicada, o Masterchef ainda tem de trabalhar mais”, brinca. Num dos episódios do programa da RTP, em 2023, apresentaram-se três chefs africanas e os seus pratos tradicionais. Nos dias seguintes apareceram-lhe umas quantas pessoas a querer provar o sabor e cheiro do que só conseguiram conhecer pela vista do ecrã. “Tem de começar pelos jornais e pela TV. Só nós aqui não fazemos o caminho sozinhos”, remata.
Agora que já ajudou uns quantos portugueses a iniciar a sua “jornada pela comida africana”, o seu “objectivo número um é levar esta cozinha ao topo.”
Há muitos mais a comer com as mãos
“Como eu sou um cota, acho que a nossa comida é para fazer à antiga”, responde Paulo Soares quando ouve falar numa cozinha angolana modernizada. Numa rua curta perto do Jardim das Amoreiras, Lisboa, explora o restaurante da Casa de Angola (Travessa da Fábrica das Sedas, 7, Amoreiras), uma associação cultural. Não é restaurante que se note por acaso: o menu mantém-se discreto na sacada do edifício e é preciso tocar à campainha para entrar. Entra-se no burburinho de um restaurante cheio para o almoço, às vezes com música, à porta fechada. Paulo Soares é cozinheiro e anfitrião que vai explicando o peito alto, a carne seca, o funge de cabidela, o muzongué (um tipo de caldo de peixe). Para ele, estar na sala da Casa de Angola “não é pôr comida na mesa”. “Gosto de falar da nossa comida, da nossa mandioca, que é das coisas mais poderosas do mundo. E Deus queira que isso se mantenha por muito tempo — que façam perguntas, para que eu possa falar com essas pessoas”, diz.
Começou a sentir o apego à comida angolana algumas décadas depois de estar em Portugal. Chegou com oito anos, em 1982, e só em 2007, quando abriu o Terra de Música, um bar “muito de malta angolana”, percebeu que a música e a comida são os gatilhos da saudade. A meio de uma noite de som, dava vontade de comer um caldo de peixe à moda de Angola e por isso começou a aplicar-se na cozinha. Hoje, vêm à Casa de Angola muitos conterrâneos. “Considero-me muito bom a fazer comida angolana, eu gosto da minha comida e não falo isso com arrogância, é com orgulho”, sublinha.
O seu cliente angolano é exigente e há uma questão de classe que o diferencia. “O meu cliente não tem problemas de dinheiro. O meu cliente vai a Massamá para comer uma moamba? Não vai. Como os de lá não vêm aqui, pensam que é elitista”, diz. Este cliente dá-lhe margem para ter um produto de qualidade, caro e difícil de encontrar, como o bagre, os quiabos, o óleo de palma.
De vez em quando, ainda ouve alguém dizer que “o quiabo tem ranho” ou vê alguém cheirar a comida com dúvidas — “é impressionante como as pessoas são educadas e depois fazem estas coisas”, comenta. Porém, a sua visão do estado da arte é optimista: a curiosidade do mundo pela comida angolana está aí, afirma, nos colegas que o procuram para aprender, nos russos, americanos e chineses que acabam na sua mesa — “achava que éramos os únicos a comer com as mãos… já vi um coreano comer com as mãos melhor do que eu”.
Este nicho de curiosos precisa de ser coroado de informação, para que esta cultura ganhe estatuto. “Há pouca coisa escrita, nós em Angola não escrevemos a nossa história. Não é uma questão de receitas, isso está na Internet, eu quero é saber o porquê da moamba. Dizer que ‘é o que a terra dá’ é pouco”, diz Paulo, que desde o início agarrou clientes portugueses com a sua mão para o bitoque ou para as pataniscas: “Tenho um cliente que come bitoque aqui há dez anos. Nunca provou outra coisa, mas traz outros e diz ‘prova a moamba que é boa’”.
O gesto há mais tempo repetido
Um homem na cozinha a bater funge é uma novidade que muitos africanos conservadores não estão prontos para encarar. “Muitas vezes me chamaram feiticeiro aqui”, lembra Paulo Soares. “Em Angola ainda há esse machismo.” Em Portugal, embora os homens chefs de alta cozinha sejam mais premiados e se tenham tornado estrelas mediáticas, as mulheres são as guardiãs da cozinha tradicional e popular, em restaurantes de domingo, casas antigas, tascas. Mesmo quando falamos de cozinha portuguesa, muitas delas são africanas, frisa André Magalhães.
No alto da Mouraria, Jeny Sulemange é a guardiã da cozinha moçambicana no Cantinho do Aziz. “Sou um bocadinho da antiguidade. Aqui tens de pilar o alho, não aceito o alho congelado, e faço o meu próprio leite de coco, faz toda a diferença”, explica. Apesar disto, não preenche o estereótipo das “tias” de Moçambique, as mulheres mais velhas e experientes. Divide-se entre Lisboa, a região de Nampula, onde nasceu, e Londres e Nova Iorque, onde dá aulas de comida moçambicana e faz pop-ups. Publicou Cozinha Moçambicana (Arte Plural, 2019) e teve uma série no Amazon Prime: Jeny Sulemange - O Meu Mundo.
Depois de ter sido visitada por influencers e chefs norte-americanos, começou a receber turistas de todo o mundo; o Cantinho do Aziz (Rua de São Lourenço, 5, Mouraria) está na imprensa e roteiros estrangeiros da cidade; há filas à hora do almoço e, à tarde, as mesas da esplanada enchem-se de jarros de água com gelo para receber os participantes de tours gastronómicos. A explosão da cozinha africana pode tardar, mas a do Cantinho do Aziz é o presente.
Aqui come-se frango à cafreal, à zambeziana, e os caris de camarão ou caranguejo, que muitos portugueses acham caros. Custam entre 12 e 17 euros. “Se for preciso vão gastar 15 euros no Mc Donald's”, ri-se Jeny. Com a inspiração das viagens que faz, mete Moçambique em tudo quanto pode. No Cantinho do Aziz tem pratos de assinatura como a miamba macua, uma mistura da moqueca brasileira com sabores do Norte de Moçambique, ou o bakra piri piri, um estufado condimentado de borrego.
“Há muitos homens, uma mulher que faz isto devia ser mais valorizada”, diz Jeny — “talvez me falte um padrinho”, equaciona. Há 15 anos pegou no restaurante fundado no final da década de 1960 pelos sogros. Na época os clientes eram os saudosos do seu país e hoje ainda há aqueles que querem comer como em Moçambique. É impossível: o país é grande, os preparos variam de Norte para Sul, e a mão de quem cozinha conta.
“A nossa comida é diferente das outras cozinhas africanas. Tem o caril da Índia, o tomate e a cebola de Portugal, os peixes, a banana-pão e o quiabo de Moçambique. Tem o coentro em pó ou os cominhos, que não há na cozinha angolana ou de São Tomé”, resume Jeny.
A diversidade de territórios, história e cultura dentro destas cozinhas africanas têm em comum “as pequenas voltas que as mulheres conseguiram dar para tornar cozinhas pobres interessantes”, diz André Magalhães. “As qualidades destas cozinhas têm a ver com a história africana, muito mais antiga do que a europeia. Os europeus não gostam de admitir isto. Não vale a pena continuar a dizer que é cozinha de pretos, de pobres. Atrás dela está muito mais tempo de repetição de gesto do que nas nossas cozinhas. Quando admitirem isto, vai ser tudo muito mais interessante”, resume o chef e investigador. Venha o olhar refrescado sobre o que é ancestral.