Biblioteca Municipal de Santa Marta de Penaguião: “A minha avó falava com o vento”

“A biblioteca não é ainda o que queremos, mas sabemos para onde queremos que vá. Queremos que os jovens visitem a biblioteca, porque os livros fazem de nós pessoas mais ricas”, diz Sílvia Silva.

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A Biblioteca Municipal de Santa Marta de Penaguião foi inaugurada a 2 de novembro de 1987 João da Silva
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"Certo e desconhecido cavaleiro francês, um tal Conde de Guillon que andou por estas terras, mandou queimar a capela de Santa Marta. Consumado o acto sacrílego, a Santa apareceu-lhe ditando o castigo: que plantasse uma vinha, e cuidasse dela. (...) Arrependido e humilhado, nem quis ver a aparição e, curvado, tapou os olhos com as mãos, mas ao descobri-los, tinha a seus pés um corvo, ave profética e sagrada, de acordo com crenças antigas, símbolo do mau agoiro que pressente a morte com o seu grasnar. O contrito conde cumpriu a dura penitência, e ficou cheio de alegria na hora da vindima, porque nunca tinha produzido nada na vida. Lembrou-se então de oferecer à Santa as uvas, fruto do seu suor, e em vez de um corvo, apareceram-lhe pombas brancas e um cordeiro, símbolos da pureza e da reconciliação. Estava perdoado. E, desde então, a localidade começou a ter um nome: Santa Marta de Pena (castigo) de Guillon. Que, segundo a tradução (e tradição) popular, veio a dar Santa Marta de Penaguião."
Artur Vaz, Pena minha, Penaguião

Reza a lenda, partilhada por Artur Vaz em Pena minha, Penaguião, que foi assim que nasceu o nome desta vila do Alto Douro Vinhateiro, na Região Património Mundial, no distrito de Vila Real, em Trás-os-Montes, que, nas palavras de Miguel Torga, é a "única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo". A vila de Santa Marta de Penaguião é conhecida no mundo vinícola pelas suas encostas íngremes, solos ricos e pela tradição da pisa a pé, o método tradicional de esmagar as uvas que ainda é usado nos dias de hoje.

"Marta aparece nos Evangelhos (…) como sendo a irmã de Lázaro e Maria, os três amigos que Jesus Cristo tinha na aldeia de Betânia, a poucos quilómetros de Jerusalém, e em cuja casa normalmente se hospedava, quando ia à cidade ou ao Templo. Marta — nome que em aramaico significa mestra ou senhora — é referida como mulher de trabalho e muita lida doméstica (…). Por isso, na representação iconográfica aparece como diligente dona de casa, sendo representada com uma vassoura, uma concha, um molho de chaves. Atributos que levarão a que fosse, em 1756, declarada também a Padroeira da Região Demarcada do Douro e da Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro", esclarece Artur Vaz, na mesma obra.

Em Santa Marta de Penaguião, comecei por ouvir Sílvia Silva, vice-presidente da autarquia, sobre o gosto de utilizar as mãos: "A cultura do papel é algo que eu não consigo imaginar que se deixe cair. Eu sei que se calhar é um contrassenso dizer isto no meio deste mundo digital em que vivemos, mas eu adoro livros e os meus blocos de notas e ver as minhas ideias escritas pelas minhas próprias mãos."

"Pelas minhas próprias mãos." Sílvia cresceu entre vinhas e vindimas, onde o trabalho manual é identitário, mas sempre houve espaço para pegar em livros, ler histórias e contá-las: "A minha mãe não sabe ler nem escrever, mas o meu pai sabe. Ele fez a quarta classe e depois só não estudou mais porque pertencia a uma família extremamente pobre e não havia outra alternativa a não ser trabalhar. Mas ele adorava ler e escrever e tinha uma caligrafia muito bonita. A dada altura, o meu pai foi para a tropa e, como tinha acesso a muitos livros, leu muito. Mais tarde, quando eu era criança e o acompanhava para a vinha, para onde ia sempre arreliada e a chorar porque não gostava de ir para lá, o meu pai contava-me histórias e eu regressava sempre encantada. Eu conheci muito cedo a história de Simão e Teresa, de Amor de Perdição, que o meu pai adorava. Ele contava-me que um episódio importante da história se tinha passado em Vila Real, além do monte visível da nossa vinha, que ficava virada para a EN2. Eu fascinava-me com aquela história de amor e perguntava-lhe muitas coisas. Depois, quando já estava cansada dessa história ou implicava mais por estar na vinha, ele contava outra sobre uma casa branca que havia por ali e onde viviam três princesas e em que depois também entrava um pescador e um cão. Mais tarde, li essas histórias todas em livros e fiquei fascinada com o conhecimento do meu pai e percebi que ele era uma pessoa extremamente letrada, e que foram os livros que lhe deram um mundo que ele não conseguiu conhecer por falta de dinheiro", contou-me a vice-presidente, com nostalgia na voz e no olhar.

Livros: uma forma de conhecer o mundo.

— Para onde se dirige a Biblioteca Municipal de Santa Marta de Penaguião?

— A nossa biblioteca não é ainda o que queremos que seja, mas sabemos para onde queremos que vá. Queremos que os jovens visitem a biblioteca, porque os livros fazem de nós pessoas mais ricas. E quem lê, aprende a escrever, e nós precisamos que as pessoas escrevam melhor. E é também por aí que a nova biblioteca irá. Vamos aproximá-la da escola e dotá-la de tecnologias e de uma academia de ofícios relacionada com fotografia e cinema, por exemplo, para que os jovens se sintam atraídos pela biblioteca e, por consequência, pelos livros —​ projetou Sílvia.

A Biblioteca Municipal de Santa Marta de Penaguião foi inaugurada a 2 de novembro de 1987 pela mão do historiador Artur Vaz, presidente da câmara entre 1985 e 1995, numa garagem no Mercado Municipal, onde foram dispostos algum mobiliário e algumas centenas de livros.

Hoje, a realidade é outra. "Temos cerca de 20 mil livros entre arquivo de acesso geral e arquivo morto", explicou-me Lília Martins, bibliotecária em Santa Marta de Penaguião desde 2002. Nascida no distrito de Vila Real e criada em Penaguião, Lília relata um passado rico em livros, mas não só: "A minha avó não sabia ler, mas sabia interpretar as estrelas e falava com o vento e com as árvores, por isso havia sempre muitas histórias lá em casa. E também tínhamos muitos livros. Os meus pais liam, pelo que sempre tive esse bom exemplo. Eu comecei, como quase todas as meninas da minha idade, com os livros da Anita, que agora se chama Martine. E fui educada com primos mais velhos que também liam. Eu acho que, em geral, nos tornamos leitores pelo exemplo de ver os outros a ler."

—​ É essa a sua missão?

— A minha missão é levar informação credível ao maior número possível de pessoas, que vá ao encontro das expectativas da população, além de preservar a nossa cultura, identidade e património. Todos os anos auscultamos os nossos leitores para saber que géneros preferem e em que formatos gostam de ler e as aquisições de livros são feitas com base nisso. Desde a pandemia, registamos um substancial aumento nos empréstimos domiciliários e também nas leituras presenciais.

— Falou em preservar a cultura, identidade e património. Isso explica a sua sugestão de leitura?

Pena Minha, Penaguião é uma resenha histórica sobre a nossa terra e a nossa gente, escrita por alguém com conhecimento de causa. É uma forma de homenagear a obra e o criador da biblioteca, mas sobretudo as nossas gentes e tradições. Está aí toda a identidade de Santa Marta de Penaguião enquanto povo.

"E percebendo a fundo as cores e os cheiros, o gosto e a essência, o sonho e a vida, a luz e a sombra, a música e o silêncio, preste um sentido preito ao querer e ao esforço das mulheres e dos homens, que, ao longo dos séculos, com trabalho, sangue, suor, sofrimento e persistente teimosia, souberam construir essa paisagem/monumento tão genuinamente peculiar e grandiosa", escreve Artur Vaz.

Antes de deixar Santa Marta de Penaguião, demorei-me a contemplar o monumento paisagístico e a ouvir as histórias que o vento e as árvores contam a quem os quiser ouvir.

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O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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