Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo: Guardiã das memórias, artífice do presente
É um dos mais importantes arquivos municipais do país. Alberga diversos fundos que permanecem propriedade das instituições ou famílias, mas são depositados no arquivo para conservação
“Naquelas recuadas terras trasmontanas, que a elevada cortina do Marão inibe de receberem a carícia do vento marítimo, as oscilações climatéricas atingem a máxima amplitude. ‘Nove meses de inverno e três de inferno’ – diz o rifão local”
Campos Monteiro, Ares da Minha Serra
A Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo está localizada num belíssimo solar situado no centro histórico da vila, perto da igreja matriz. Contíguo à biblioteca, num edifício com todas as condições técnicas necessárias à conservação dos acervos, nomeadamente controlo de temperatura e humidade, encontra-se o Arquivo Municipal. “Aqui está reunida documentação da câmara municipal e mais de 40 fundos de diversas instituições e famílias. Dispomos de vasta documentação em pergaminho desde o século XIII ao XVI, já totalmente disponível online. A partir do século XVII, temos documentos em papel da Câmara e de organismos como a Provedoria e a Correição. Possuímos ainda documentação de quase toda a região de Trás-os-Montes, e o arquivo continua a ser enriquecido”, apresentou Rui Leonardo, arqueólogo e técnico superior da biblioteca.
O Arquivo Municipal de Torre de Moncorvo é um dos mais importantes arquivos municipais do país. Alberga diversos fundos que permanecem propriedade das instituições ou famílias, mas são depositados no arquivo para conservação, como por exemplo o fundo da Misericórdia de Moncorvo, que possui uma vasta biblioteca com incunábulos desde o século XVI.
O documento mais antigo do arquivo é o Foral da Junqueira, concedido por D. Sancho I, em 1201, que define os limites da localidade e os direitos e deveres dos habitantes. “É um documento importantíssimo e raro, não é qualquer arquivo que tem um documento de 1201 à sua guarda e num estado razoável”, destacou Rui.
Os técnicos do arquivo costumam levar à escola alguns documentos antigos em melhor estado. Segundo o arqueólogo, “os alunos queixam-se de não perceber a letra, mas ficam entusiasmados e surpreendidos com a quantidade de história e documentos antigos que Torre de Moncorvo possui. Para nós, é gratificante poder partilhar um pouco da história local com eles.”
Ares da Minha Serra – Novelas Transmontanas, da autoria de Campos Monteiro, nascido em Torre de Moncorvo a 7 de março de 1876, é também uma excelente forma de conhecer um pouco melhor as especificidades da vila transmontana. Retomando o texto citado na abertura: “Em julho e agosto, logo ao raiar da aurora entra de soprar uma bafagem de fornalha. Pelo dia fora, o sol dardeja raios candentes, abrasadores, opressivos, que interrompem o movimento nas ruas e dão aos pulmões o respirar ofegante de quem se debate arpoado pela dispneia. E a noite, sem uma brisa, sem o estremecer de uma folha de árvore, é ainda um pesadelo —, o calor externo concentrando-se nas casas e provocando uma transpiração profusa, incomodativa e deprimente. Em setembro, já não sucede assim. Os moradores da vila deixam de dormir ao ar livre, nos quintais ou nas varandas, únicos sítios onde podem encontrar um pouco de frescura, de sono tranquilo e reparador, durante as encalmadas noites de verão. Agora, as noites tornam-se mais suaves. Já uma leve aragem de leste cicia nos beirais. E as manhãs são agradáveis, convidativas, amenizadas pela brisa e aromatizadas pela emanação forte dos mostos, que sobe dos lagares.”
É curto o caminho até ao Centro de Memória, situado no recinto da biblioteca, e cujo objetivo é recolher, gerir, preservar, valorizar e difundir o património oral, documental, bibliográfico e museológico de Torre de Moncorvo e dos moncorvenses. “Este centro, inaugurado em 2008, alberga as doações feitas ao município. É onde se preserva e divulga a história e a memória da vila e do concelho de Torre de Moncorvo. Aqui, estudam-se e preservam-se livros, documentos, artefactos, tradições e, em suma, a cultura e a essência dos moncorvenses”, detalhou Luís Pereira, técnico superior.
O Centro de Memória dispõe de 76 fundos, totalizando cerca de 50 mil livros catalogados. O maior e mais procurado é o do professor Santos Júnior. “O professor dedicou-se a várias áreas, como Zoologia, Antropologia, Etnografia, Arqueologia e História. O seu acervo contém cerca de 25 mil livros, além de inúmeros documentos e correspondência, que são extremamente valiosos por serem exemplares únicos”, concluiu Luís.
Menor, mas igualmente relevante, é o espólio de Campos Monteiro. Em Ares da Minha Serra, o autor retrata várias cenas tradicionais da vila transmontana: “A partição da amêndoa, em casa da Sr.ª D. Clotilde Paredes, começava por alturas das oito horas da noite e terminava infalivelmente às dez e meia. (…) Depois, às noites, na cozinha, principiava a partição, que se prolongava até perto do Natal. Vinham sempre cinco ou seis mulheres à jeira, para auxiliarem as criadas nessa monótona tarefa. Sentavam-se em círculo no chão, de costas voltadas para os muros e pernas cruzadas à moda árabe. Diante de cada qual, uma pedra de granito. Na mão direita, uma barrinha de ferro ou aço, a servir de martelo. O feitor trazia a amêndoa em cestos, esvaziava-os para dentro da roda em montículos piramidais. E toda a bendita noite, erguendo e descendo o braço, as mulheres despediam pancadas secas, separando as duas valvas da casca lenhosa de onde surgia, como pérola baça em concha de ostra, a semente oblonga e saborosa.”
Por fim, conversei com Helena Pontes, chefe da Divisão de Arquivo e Cultura, sobre a biblioteca e os eventos culturais. “A minha missão é servir os munícipes e os visitantes. Na biblioteca, organizamos apresentações de livros, exposições e várias atividades culturais para os moncorvenses, porque temos o mesmo direito de acesso à cultura que existe nas grandes cidades. Trabalhamos para isso. Claro que os eventos culturais são, primeiramente, para os moncorvenses, mas como somos poucos — a vila tem cerca de três mil habitantes, num total de oito mil no concelho — também os fazemos para atrair visitantes. E esses, quando nos visitam uma vez, acabam por regressar.”
A responsável autárquica destacou ainda a importância de preservar memórias e, ainda mais importante, de manter as tradições: “Temos quatro grandes eventos ao longo do ano, um em cada trimestre, mas recentemente começámos a apostar também em eventos tradicionais, pois queremos realmente manter as tradições no nosso concelho. Apoiamos o Entrudo Lagarto, uma tradição secular na Aldeia da Cardanha. Além disso, temos o Festival Vinho Sabor Douro na praia fluvial da Foz do Sabor, a última aldeia piscatória do concelho, onde se pratica a pesca tradicional da boga e do barbo. Temos também a Rota das Pipas e a Matança Tradicional do Porco na aldeia de Açoreira, em que as pessoas vão de adega em adega a provar o vinho e ainda o São Martinho, em Maçores, onde se junta vinho numa caldeira e nos ajoelhamos para beber. Eu própria já participei, e embora não seja muito higiénico, é uma tradição e não me fez mal nenhum.”
A propósito do vinho e das tradições, segue um trecho da obra sugerida por Helena Pontes:
“Os pisadores, às oito horas da noite em ponto, saltaram para o lagar. Eram seis ao todo. Tinham despido as calças e arregaçado as ceroulas até à raiz das coxas. E em círculo, de braços cruzados sobre o estômago, iam marchando vagarosos, erguendo e abaixando os pés, que se enterravam naquele montão colossal de cachos, esmagando os bagos e fazendo espadanar o sumo cor de sangue. Ao cabo de duas horas, já o mosto sobrenadava, espumejante. Mas era necessário prosseguir na faina por muito tempo — dias e noites seguidas — até que o densímetro marcasse o ponto exigido. Por isso eles continuavam marchando em passo lento e cadenciado, dando voltas sobre voltas ao lagar e inclinando a cabeça quando, ao passarem sob a enorme trave da prensa, sentiam o receio instintivo de um traumatismo frontal.”
Despedi-me ao fim da tarde de Torre de Moncorvo, já com saudades. Tenho um fascínio por povoações isoladas, que orgulhosamente se bastam a si próprias.
Encerro com a mestria de Campos Monteiro ao descrever o adeus do João de Ares da Minha Serra à remota vila transmontana: “João continuava a envolver a vila na sua mirada enternecida. Já a distância a fazia mais pequena, dando aos edifícios a aparência de cubos minúsculos, próprios para brinquedos de crianças. Só a igreja se impunha ainda, maciça e alta, monstro de pedra desafiando os séculos. Depois, a locomotiva torceu subitamente para a esquerda. A vila deixou de ver-se. E o comboio, coleando e rangendo, atirando para o céu volutas de fumo esbranquiçado, entranhou-se nas arribas do Douro.”
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990