O Coração Ainda Bate. Um código conhecido
Há filmes que deixam rasto. Inês Meneses lembra um deles.
Revi ontem “O Piano”, o filme de Jane Campion, estreado em Portugal já no fim de 1993. Nessa altura fui ao cinema e fiquei arrebatada. Tombei perante tanta beleza. Era a história, sim, mas tudo o que a vestia: os atores, o mar, o piano e a música de Michael Nyman. Costumo insistir nesta ideia de que há filmes que nos contam. Contam, no sentido em que revelam a nossa interioridade. Dizem-nos de que realidade somos feitos, até quando é de ficção que se trata. Os filmes são como o perfume que se liga à nossa pele. Há uns que nunca serão o nosso rasto. O Piano faz parte do meu.
Em 1993 estava eu casada, pela primeira vez, há um ano. Íamos muito ao cinema. Íamos sempre. Sair de casa para ir ver um filme, que nos evadisse da rotina, era precioso. Um jantar, uma saída marcada com amigos, falar sobre o filme, andar a mastigá-lo dias-a-fio. Lembrei-me agora da conversa que tive, no Fala com Ela, com o Eduardo Aires e em que ele me contou que a avó, sábia, lhe dizia que estava cansada de mastigar. É uma bela frase. Fui parar ao verbo para falar do cinema. Sim, mastigávamos o que víamos: as coisas pousavam em nós muito tempo. Agora é difícil apanhar tudo e demorar o mesmo tempo na sua digestão. Temos muito para ver. Andamos sôfregos, mesmo que vazios.
Quando vi O Piano, comprei o CD com a banda sonora. Ouvi tantas vezes os mesmos temas, que, ontem, voltando ao filme, era como se os meus ouvidos relembrassem um código conhecido. Ainda lá estava. Ainda cá está.
Trinta anos depois, O Piano continua a ser uma peça de cinema magistral. As coisas são boas quando o tempo passa por elas e elas se mantêm misteriosamente inalteradas e estranhamente actuais, apontando para a eternidade (lembrei-me imediatamente da Sade enquanto escrevi isto. Há uma aura que não se explica sobre o que é intemporal).
O Piano é uma história rara de amor. Está ali imaculada até quando se fala de traição, mas como pode ser traição se é mesmo amor? E quando é amor, visceral, de ficarmos até doentes de desejo, não pode ser traição. Nós sabemos que é amor.
Havia imagens muito fortes que guardava do filme: o vestido de Ada em gaiola, imerso no oceano. O dedo de Baines no buraquinho da meia dela. É impressionante o erotismo que esta imagem contém. Tudo no filme continua a ser inquestionável: a fotografia, os planos do piano na praia, as tranças de Ada que lhe sulcam os ouvidos, a impossibilidade de um marido nunca desejado mas que se consumiu a desejá-la. Ela, implacável, a afastá-lo.
Passaram trinta anos e o filme não só me conta a mim naquele tempo, como me apanhou três décadas depois vendo-me agora diferente, mas eu percebendo que continua a contar-me hoje. O filme permanece próximo de uma obra-prima. Talvez eu possa dizer isto enquanto espectadora. Não sou crítica nem me considero entendedora. Sou sensível ao belo e ao intemporal. Sou ainda mais sensível a uma história de amor que mexe connosco, venha ela do século 19 ou dos dias de hoje. Por que razão contaremos hoje menos histórias de amor? O amor romântico já não vende? Por que tememos uma história clássica que pode acabar bem? Eu ainda procuro no cinema um final feliz.
Há filmes a que tive medo de voltar por recear que o tempo lhes esgotasse a magia. O Piano foi um deles. Tudo o que me fez sentir, na altura, foi tão forte, que queria condensar esse sentimento, não permitindo abri-lo ao meu mundo actual.
Hoje, tendo visto o mesmo filme, acrescentei mais vida à minha interioridade. Estremeci com o amor e a beleza embrulhados por Jane Campion. Retenho a magia do cinema, maior do que as ondas gigantes que fustigavam aquele piano. O piano de Ada onde Baines quis aprender a tocar, como se tocasse no corpo dela. Até tocar no corpo dela. O toque define-nos.
O coração ainda bate.