Biblioteca Municipal de Seia: Cruzamento de estradas
“Temos de responder às novas solicitações e não ser estanques. Olhe, quando começámos, uma das guerras que havia era se devíamos ter ou não a revista Maria na biblioteca”, revela Teresa Rua.
“Os lobos rondam e uivam em volta de nós. Os pastores encolhem-se debaixo das lapas com as ovelhas abrigadas. E se tomba nevoeiro? O nevoeiro é o pior. É como se a noite matasse o dia à traição.”
Avelino Cunhal, Senalonga
Avelino Cunhal, o pai de Álvaro Cunhal, dirigente histórico do Partido Comunista Português, nasceu em Seia a 28 de outubro de 1887 e é o autor de Senalonga. A obra, publicada originalmente em 1965, tem capa ilustrada por Miguel Flávio, e foi reeditada em janeiro de 2022 pela Câmara Municipal de Seia.
Senalonga é uma vila. Onde fica? O autor explica: “Se a vila de Senalonga tivesse existido, ficaria perdida nas abas de uma grande serra no coração do país. Mas a vila de Senalonga nunca existiu. O que se vai contar supõe-se ter acontecido pelos poentes do século XIX e alvores do século XX. Vamos, uma data certa: 1900.”
As pequenas histórias da vila de Senalonga foram escritas em Lisboa em 1964, “sem apoio de documento escrito, público ou particular, sem recorte de qualquer jornal da época, sem fotografias de locais com retratos de pessoas. Assim, demonstrado fica ser tudo quanto o autor narra, vila, personagens, sucessos, produto de imaginação”, explica Avelino Cunhal na nota introdutória.
“Escolhi o Senalonga porque o Avelino Cunhal retrata muito bem uma época da nossa terra com uma linguagem engraçadíssima. As histórias falam de personalidades da época, situações de governação, enfim, contam-nos o dia-a-dia da vila”, esclareceu-me Teresa Rua, diretora da Biblioteca Municipal de Seia.
— Há quanto tempo está nesta biblioteca, Teresa?
— Desde o primeiro dia. Foi comigo que foi inaugurada e tem sido sob a minha alçada que tem estado a funcionar durante estes 30 anos, com tudo de bom e de mau que tem sido feito. A dada altura, esteve fechada para reabilitação dos espaços e percebermos qual é afinal a nossa função e que serviços é que podemos prestar.
— Adaptação…
— Sim, é o que uma biblioteca tem de ser. Temos de responder às novas solicitações e não ser estanques. Olhe, quando começámos, uma das guerras que havia era se devíamos ter ou não a revista Maria na biblioteca. Eu achava que sim. Nós preocupamo-nos muito com a qualidade dos fundos documentais, e é óbvio que nos temos de preocupar com isso e com a qualidade, mas as bibliotecas são feitas pelo público e por isso temos de ajustar a oferta. É esse exercício de equilíbrio que procuramos fazer, até porque o conceito de qualidade é subjetivo.
— É desafiante?
— Muito. Todos os dias, esta profissão é uma novidade. Trabalhamos para diferentes públicos-alvo e com as pessoas e não para as pessoas. Eu acho que esta abordagem faz toda a diferença. De cada vez que planeamos uma atividade, tentamos ouvir as pessoas para as quais elas se destinam e prestar um serviço público em função das solicitações. As perguntas de hoje são diferentes das perguntas que o público fazia há dez anos.
— Mais complexas?
— Sem dúvida. Vou dar um exemplo concreto daquilo que considero ser serviço público à comunidade. Nós trabalhamos com escolas e, há muitos anos, pedi à psicóloga da escola secundária para fazermos um trabalho conjunto com os adolescentes. Lançámos um desafio para perceber quais eram os assuntos que eles gostavam de ver trabalhados. Selecionámos quatro temas, distúrbios do comportamento alimentar, violência na família, morte na adolescência e sexualidade, e desenvolvemos uma série de iniciativas. Na primeira, sobre o comportamento alimentar, participaram a equipa do Daniel Sampaio, psiquiatras do Porto e de Lisboa e jornalistas e fizemos um fórum à porta fechada sem adultos na sala. Os jovens escreviam as perguntas e dúvidas num papel e colocavam num saco, pelo que não se sentiam espiados pelos professores nem por ninguém. Depois, os especialistas respondiam às perguntas. À noite, abrimos o fórum à comunidade. No dia seguinte, uma pessoa que tinha assistido veio pedir-me ajuda. Estava desesperada por causa da filha que estudava no 12.º ano e que pesava 33 kg. Pedi-lhe que a trouxesse para eu falar com ela. Olhe, fiquei estarrecida quando a vi. Era literalmente pele e osso, viam-se as veias todas. Pedi imediatamente ajuda ao Daniel Sampaio e a miúda foi encaminhada para Coimbra nesse mesmo dia. Quando lá chegou, explicou que não bebia ou comia há 48 horas. A médica que a recebeu disse que se não tivesse entrado naquele dia, morria. Portanto, a noção que eu tenho é que salvámos uma vida e isso para mim é a maior noção de serviço público que pode haver. E isso porque trabalhamos com as pessoas e que estamos a todo o momento a tentar perceber como é que o nosso trabalho pode mudar comportamentos e as vidas das pessoas para melhor. Hoje, essa miúda é psicóloga e ajuda outros também.
A propósito, partilho um trecho de uma história de Senalonga intitulada “De como se afogam mágoas“: “E o Jacinto voltou a esconder a cara entre os braços, como se quisesse esconder a comoção.
— Se eu tivesse adivinhado, Jacinto...
— Agora já sabes, já sabes tudo. E tu também tens mágoas. Ninguém pode viver sem mágoas, Tobias. Mas devemos afogar as mágoas, matá-las dentro de nós, senão são elas que nos matam, Tobias. São elas que nos roem as entranhas e nos consomem o coração. Ouve, Tobias. Deus é bom e foi previdente. Ao criar o mundo criou remedeio para todos os males. (…) Deus colocou ao nosso alcance o meio de afogarmos as nossas mágoas. (…) Vai buscar a garrafa e traz dois copos. (…) Vamos os dois afogar as nossas mágoas. (…) Ambos beberam em silêncio, e em silêncio afogaram as suas mágoas. Mas dentro do Jacinto a aguardente encontrava o riso do mariola.”
Avelino Cunhal formou-se em direito e foi administrador do concelho de Seia (1917) e Governador Civil do Distrito da Guarda (1922). A partir de 1924, exerceu advocacia em Lisboa, destacando-se como advogado nos tribunais fascistas na defesa de presos políticos acusados pela ditadura de crimes de subversão contra o regime. Colaborou com as revistas Vértice, Seara Nova e O Diabo e, sob o pseudónimo de Pedro Serôdio, escreveu diversas peças neorrealistas. “Os seus trabalhos tinham claras intenções de intervenção social, pelo que foram alvo de censura, por vezes com a própria detenção do autor”, explicou a autarquia de Seia quando reeditou Senalonga.
Palavra, debate, reflexão, intervenção, informação. Fazer a diferença em prol da comunidade. Era esta a intenção de Avelino Cunhal. É esta intenção que leio nas palavras de Teresa Rua.
“Havia miúdos que faziam da biblioteca a sua casa. Um deles, que hoje já é um homem, tinha um processo na CPCJ por causa de pequenos furtos. Eu disse-lhe que ia falar com a diretora de turma e prometi-lhe que se se portasse bem e tivesse boas notas lhe dava um presente da biblioteca. Ele portou-se bem e, no fim do ano, ofereci-lhe 15 dias na piscina municipal. Ele ficou todo contente, mas tive de lhe dizer para tomar banho e que não fosse para lá cheio de sarro. (risos) Pronto, são estas coisas… Isto para dizer que, muitas vezes, há pessoas que não têm amigos, nem famílias, ou simplesmente porque são um bocadinho postos à parte e marginalizados, encontram aqui um espaço de afeto e de acolhimento”, expôs Teresa.
E eu lembro-me imediatamente de “Cruzamento de estradas”, o título da minha história preferida do livro de Avelino Cunhal. Retomo o trecho partilhado no início deste texto: “O nevoeiro é o pior. É como se a noite matasse o dia à traição. Toca a juntar o gado, assobio daqui, ladrar do cão dali. Toca a voltar pró povo, ceguinhos de nascença. E se adrega perder-se borrego? Chora-se o prejuízo e chora-se pela estimação.
– Vida dura e triste a da serra.
– Mas nem tudo é duro e triste, minha senhora. Também há dias de sol, de muito sol. Nesses dias a serra é um paraíso! Gatinham-se os penhascos; espoja-se a gente no cervum; bachica-se nas ribeiras. O céu e o ar inteiro são nossos. A terra, toda a redondeza da terra, é nossa. Então é tudo nosso. Homens livres, desde alva ao sol posto!”
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990