A última das românticas
Sofro de excesso de romantismo, como há pessoas que têm excesso de colesterol e elevados níveis de triglicéridos. Quem é que aguenta não se exceder no queijo e nos doces, de vez em quando?
Lá vou eu pela rua feia. Piso um lenço de papel amachucado, manchado e sujo, porque me distraí a olhar para um homem de barriga saliente que fuma um cigarro na varanda. Atrás dele as cortinas esburacadas agitam-se com o vento quente, entrevendo a casa escura e bafienta de paredes bolorentas. A rua cheira a lixo: os contentores bolçaram as sobras para a calçada como um bebé sonolento, e a recolha está atrasada — em Lisboa as ruas começam a verter líquidos como um fruto apodrecido nos primeiros dias de verão. O som de uma sirene rasga o ar parado de um junho que antevê um calor asfixiante e que se cola nas paredes dos prédios velhos, cansados, entorpecidos, que fazem a digestão lenta dos seus moradores.
Toco à campainha. Ela já me espera à janela porque o intercomunicador não funciona. À entrada do prédio está um frigorífico velho, um triciclo partido e uns quantos alguidares. Provavelmente não pertencem a ninguém, foram deixados por velhos inquilinos que já saíram e abandonaram os seus despojos. O prédio não tem condomínio organizado, ali ficarão abandonados. Como nos filmes do velho faroeste em que as cidades fantasma, outrora invadidas por garimpeiros — os gold diggers, ficavam desertas a exibir apenas os esqueletos de animais famintos que ali tinham perecido. Também aqui, quando a noite cair, vou dar de caras com umas quantas carcaças de trotinetes moribundas tombadas no chão.
Encostado na montra da tasca no rés-do-chão, um homem solta frases alarves e ideias putrefactas sobre os emigrantes, enquanto um Bull Terrier de orelhas cortadas reage crispado às onomatopeias, preso pela trela curta do dono.
Subo as escadas de madeira rachada. A casa da minha amiga é um oásis entre o deserto quente… Está fresca, tem as paredes brancas, e o quarto está coberto de desenhos de rostos humanos desenhados por ela. Olho através da janela. O vizinho que fumava dorme agora de barriga farta ao ar e ronca sonoramente. Um fio de cerveja escorre-lhe no peito e enche uma piscina-miniatura no umbigo. Um parque aquático para mosquitos, penso.
“Sei que um dia ainda vou romantizar este lugar”, digo. Ela sorri. (E enquanto ela sorri, ou, porque ela sorri, eu já começo a romantizar — impressionante a força da cumplicidade no peso das coisas.)
Sofro de excesso de romantismo, como há pessoas que têm excesso de colesterol e elevados níveis de triglicéridos. Quem é que aguenta não se exceder um bocadinho no queijo e nos doces, de vez em quando?
Olho para as nuvens e vejo argolas de fumo como aquelas que saem da boca dos fumadores… Olho para as argolas que saem das bocas dos fumadores e vejo túneis secretos para um mundo interno e invisível cheio de sonhos nebulosos. Especulo opiniões eloquentes no silêncio de um tímido, antevejo uma emoção intensa no pigarreio de um amante, encontro um certo charme na antipatia do empregado de café, vejo liberdade na desarrumação, poética nos dias nebulosos, um brilho néon-rosa-choque nas esquinas sórdidas e pestilentas. Quem é que aguenta a realidade pura e dura, sem cometer uns excessos na fantasia? Serei a última das românticas?
Sei que no futuro vou olhar para este momento, um fotograma entre um dia de 24 horas, e também ele será romantizado. Nele o cheiro a lixo já se terá transformado apenas num ligeiro cheiro acre, as garrafas no chão serão só vestígios de folia, e as paredes bafientas terão contornos cinematográficos de ruínas sicilianas, enquanto o calor intolerável será a recordação do despontar de verão. E o sol vai valer por tudo porque esta é uma fotografia a cores.
Vivi numa casa muito velha de um prédio decadente da baixa lisboeta (aquela “baixa” que não é chique) durante muitos anos. Guardo como se fosse a cena de um filme mudo do Charlie Chaplin, a memória do momento em que dois meses depois de me mudar para minha “nova” casa, acabadinha de comprar, parte das escadas e do prédio ruíram, graças a uma infiltração severa, e eu me vi suspensa num terceiro andar do prédio (metáforas à parte: eu estava realmente suspensa, já que as escadas no segundo andar tinham desabado num fosso vazio!).
Revejo a cena a preto e branco: a Rapariga telefona aos bombeiros, em mímica, sem voz, só a mover a boca, acompanhada de uma música de piano, ,seguida do ecrã a preto onde se lê a legenda: “O meu nome é Ana Lázaro e estou na Rua de São Lázaro, e as escadas da minha casa cujo empréstimo a quarenta anos acabei de contrair, ruíram!” No próximo separador, a resposta do Bombeiro a gracejar: “Ah, menina Lázaro… Então a rua é toda sua!” “Socorro, podem vir ajudar-me?!? Isto não é uma piada!” Um clássico!
Nas cenas seguintes eu, o meu então namorado, vestimos sacos de plástico da cabeça aos pés para ir enfiar veneno e ratoeiras debaixo dos móveis dos vizinhos de cima, que não se davam ao trabalho de matar os ratos que circulavam no telhado e entravam pelas fendas. Revejo esses episódios ilustrados com a música do Ghostbusters, o frame de um filme alucinado. Lembro-me das pragas de baratas que vinham do mercado e invadiam todos os ralos, ranhuras e brechas pelo que calafetávamos a casa como se tratasse de um laboratório de alta segurança.
E das vezes em que a minha vizinha de baixo, uma velhota que vivia sozinha com os seus medicamentos e a sua demência, me pedia para ir lá a casa ajudar a encontrar os dentes dela, que normalmente estavam depositados junto ao parapeito da janela. Sei que não dormi muitas noites por causa do estrondo das ambulâncias, do receio que o céu me caísse em cima, como os temíveis gauleses dos livros do Astérix. E lembro-me de certa vez dar um pulo na cama, não porque o céu ou as estrelas me caíram em cima, mas porque o estuque do teto da sala caiu em cima do sofá de imitação de pele do Ikea.
Ainda assim sempre que passo pelo velho prédio da minha primeira casa adquirida com esforço no pico da austeridade do FMI paro para mirar a janela, o meu asilo de felicidade e entusiasmo.
Recordo-me de nessa época subir para o Campo Mártires da Pátria, depois de fazer três sessões diárias de um espetáculo musical no qual era miseravelmente paga, onde vestia um fato ridículo de Elefante que não era lavado por “contenção de despesas”, e vejo-me a dançar dentro dele aos pulos como se fosse uma bailarina da Broadway, e de regressar a casa feita uma Amélie Poulin a subir Montmartre, com o coração a explodir de um amor impossível mas fabuloso.
Recordo-me das vezes em que passei à porta do Instituto de Medicina Legal, de ver os carros funerários a sair com coroas de flores, de ver os patos a esvoaçar no jardim junto aos arrumadores que tinham as mãos em forma de concha para apanhar as coisas que caiam dos outros, dos pavões coloridos a passearem junto aos pneus dos BMW dos novos proprietários da rua com vistos Gold. E sempre que penso nisto, vejo a praça como um carrossel. E o Campo Mártires ainda me parece a praça mais bonita de todas, mesmo que dance assim entre a vida e a morte, entre o feio e o primaveril, entre a miséria e o luxo.
Recordo-me de umas férias românticas numa baía do Adriático, com mar cristalino numa paisagem deslumbrante de postal em que eu estava de vestidinho curto, e de ter comido por teimosia amoras selvagens, num lugar sem WC à vista, e do passeio romântico ter um desfecho catastrófico, embaraçoso, nada perfumado. Mas penso sempre nesses dias como as “férias paradisíacas”.
No cinema usam-se 24 fotogramas por segundo, 24 imagens impressas na fita do filme que projetadas produzem a ilusão de movimento. Acho curioso que o dia também se divida em 24 bocados, numa película recortada pelas horas, prontas a registar como num filme. As películas originais do cinema eram altamente inflamáveis. Ardiam com facilidade, e num ápice a narrativa pegava fogo.
Acabámos de falar. E não consigo recordar-me da nossa conversa, nem da sequência das coisas. Como se as horas se tivessem incendiado. Saio do carro, cheia de imagens sobrepostas. Desordenadas. Só vejo as palavras que despejei nos estofos do Clio. As lágrimas que brotaram quentes dos teus olhos e que eu não consegui apanhar porque era uma despedida, e já não podia fazer uma concha com as mãos para apanhar as coisas que te caiam dos olhos. Os frames misturados e confusos. Alguns pedaços omissos, carbonizados.
Caminho na rua bonita, para a minha atual casa, novinha em folha, sem perigo de ruir, a procurar equilibrar-me como se o chão fosse um carrossel. Já a romantizar este final. Já a achar que é um “amor impossível mas fabuloso”, como o destino da Amélie Poulin. Porque afinal, quem é que aguenta a realidade pura e dura, sem cometer uns excessos na fantasia?
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990