Viver dentro da boca do peixe
Ele fica a atrasar respostas, a prender um fiozinho na minha camisola para me deixar pendurada, como os pescadores fazem delicadamente com as canas de pesca, eu a espernear sem chegar a lado nenhum.
Na Odisseia de Homero, o herói Ulisses, depois de passar dez anos na Guerra de Tróia, demora mais dez anos a voltar a Ítaca — refém de uma longa espera para regressar a casa.
Numa tarde de verão, depois de passar por dez assistentes do Serviço de Apoio ao Cliente, para resolver uma questão via telefone, estou refém de uma longa pausa, a ouvir o Für Elise de Beethoven, no que imagino ser um piano em miniatura tocado por um duende do outro lado da linha — tendo em conta as frequências agudas no meu telemóvel —, numa espera que parece demorar os mesmos vinte anos da odisseia de Ulisses.
A espera… Não duvido que de entre várias tribulações, é uma das mais tortuosas. O tormento de quem espera mede-se muitas vezes pelo grau de expectativa que tem acerca de um final, um desfecho, seja ele qual for, mesmo que por vezes esse final seja uma ilusão inalcançável. Neste caso, o final seria perceber os detalhes da faturação. Mas vejo-me perdida, quem sabe esquecida em linha para sempre, com os ouvidos fuzilados pelo micro-piano que toca em loop.
A espera… Desespera. “Obrigada por aguardar… A sua chamada será atendida dentro de momentos… pilim lilim lilim.” Desespero. Nem sequer posso interpelar o meu interlocutor, já que se trata de uma máquina e não de uma pessoa. Até que finalmente surge uma voz humana: “Importa-se de continuar a aguardar?” Antes que me lance novamente para o Beethoven grito: “Não me importo, mas pode trocar a música?”
Quando me vejo sufocada numa longa espera telefónica procuro sempre uma saída de emergência. Se por exemplo alguém embarca num verborreico monólogo sobre pacotes de TV, atualizações dos seguros de saúde infalíveis, assuntos laborais que podiam ser sintetizados num e-mail, simulo que a chamada caiu, que falhou a rede, que estou naquele sítio do tabuleiro da ponte onde as comunicações engasgam, que entrei numa garagem, ou então finjo que estou a ser parada pela polícia: “Espere… Hã… Perdão?… Diga senhor agente… Um minuto… Vou ter de desligar…”
Quando sou forçada a esperar e não tenho saída, lamento numa espécie de penitência por todas as pessoas a quem fiz esperar. É realmente tremendo. Quando era adolescente conseguia demorar aproximadamente uma eternidade a escolher a roupa com que iria sair de casa, para desespero dos meus pais que me levavam à escola. Entre tops, saias e camisolas, que pareciam não corresponder à sua etiqueta — XS, M, L — travava um duelo troiano matinal com tamanhos e formas, que pareciam recusar-se em ser minimamente gentis e cordiais com o meu corpo em transformação.
Percebi mais tarde que as roupas estavam afinal na medida certa das suas etiquetas, que não era o problema do XS nem do L, nem do meu corpo, mas do reflexo no espelho totalmente distorcido pelos meus olhos ávidos de verem outra coisa, que talvez pudesse nem existir, viciados em publicidades que metem em espera a generosa relação de nós mesmos com a nossa pele, e insistem em vender-nos pacotes de corpos infalíveis e esperar resultados inalcançáveis. Quem espera… Desespera.
Esperar numa fila, então… Sobretudo se for uma fila para pagar qualquer coisa: O ticket do estacionamento, as compras do supermercado, a consulta do médico especialista — é o pináculo do fastio da espera! Numa fila, os minutos parecem transformar-se em horas de espera. Se estivermos com pressa, transforma-se automaticamente em dias. Os números da chamada de uma máquina de senhas, seja numa padaria ou numa Loja do Cidadão, lapidificam qualquer ânimo. Imagino Ulisses diante de um ecrã a indicar a senha 32, enquanto espera com uma senha 59 na mão.
Quando me sento numa sala de espera reparo que quase todos seguramos os telemóveis, de pescoço inclinado como cisnes dobrados. Quando há crianças na sala, sinto-me impelida a fazer-lhes caretas para me distrair a mim e a elas em simultâneo, e lembro-me sempre que quando era criança, em vez de um tablet, recebia para me entreter um rebuçado floco de neve. E depois de sorver o rebuçado ficava a morder o papel, a encher a boca de tinta e corantes, com a língua vermelha, a entreter o tempo com os dentes, a abocanhar a espera.
Mas também me recordo das esperas na paragem do autocarro e do metro quando já adulta não tinha por hábito segurar um telemóvel diante dos olhos, e por isso, a espera parecia sempre desenrolar-se diante de um filme improvisado, com personagens inesperadas. De pescoço voltado para cima observava o vagabundo que contava beatas, a senhora que não parava de por batom, a rapariga com um sorriso triste atrás da janela, o rapaz de mãos nervosas. Às vezes aconteciam coisas realmente surpreendentes entre os personagens: sorrisos, esgares, ações, conversas. Às vezes até cruzavam olhares comigo. E eu ficava presa ao filme, à espera de ver o que aconteceria depois. Acho que me atrevia mais a saborear a demora. Mesmo que não gostasse muito do sabor.
Perto da minha casa há o mar, mais brando que o de Ulisses. E pelo meu mar adentro entram os pontões onde ao final do dia estão os pescadores que se instalam solitários de olhos postos nas canas, com o anzol paciente à espera de peixe. Admiro a perseverança de fazerem da espera um desporto. Como se o tempo que aguardam fosse só um prolongamento do mar e das marés que se revolvem com a Lua, a desenrolar o filme que eles mesmo fazem deslizar no carreto da cana de pesca. A saborear a demora. Gosto de os observar.
Ele pede-me para esperar, mesmo que não peça, fica a atrasar respostas, a prender um fiozinho na minha camisola para me deixar pendurada, como os pescadores fazem delicadamente com as canas de pesca, eu a espernear sem chegar a lado nenhum. Num constante des-movimento que também não é paragem. A adiar, a perpetuar, a encobrir o avanço. A desviar respostas. A fintar conversas. A fintar a vida. Como se a congelasse. Como se me congelasse.
Ele deixou-me em espera. Demora-se. Demora-me. Num encontro sempre iminente. Como se me pedisse para ficar quieta, ou melhor, suspensa. Como se me exigisse que sossegue tudo de mim, o meu agitado fluxo sanguíneo, os meus ciclos, as minhas marés, as minhas mudanças lunares (já que o mar se revolve com a lua, eu que sou tão cheia de água não havia de me revolver também?). Espero numa sala de espera invisível. Uma sala seca.
Espero. Não sei bem o quê. E o tremendo da espera é que depende sempre de uma expectativa do final, mesmo que esse final pudesse ser um começo, mesmo que o começo seja uma ilusão. Inalcançável. Como um maratonista que subitamente foi suspenso por um fio e continua a rolar os pés, sem avançar na pista, de olhos postos na meta. Ou um nadador a quem a corrente vai afastando a bóia da salvação.
Mete-me em espera porque não quer cortar a ligação, não quer que caia a chamada. Não quer desligar, não quer atravessar a ponte.
Permaneço nessa demora infindável. Ele põe-me em espera e eu farta de esperar, a roer o embrulho de promessas que não foram ditas, mas que de alguma forma parecem estar diante de mim, como um filme na paragem do autocarro, como as publicidades diante dos meus olhos, ávidos de verem outra coisa, de verem o que acontece depois. Mordo a espera, com a boca vermelha, a encher os pensamentos de corantes, a colorir a espera com imagens do final.
Eu, no anzol.
Por algum motivo, eu também não corto a linha. Não simulo a queda. Perfurada pelo gancho reajusto-me, encaixo-me, para que o anzol não me rasgue tanto. O problema do anzol é a curva. A forma. A farpa. Não se arranca de esticão. Contorço-me flexível, como as minhocas dos pescadores nos pontões, à espera de entrar na boca do peixe…
Nos pontões por vezes, entre a quietude da espera, um pescador contrai-se em silêncio: os braços tesos, os ombros rijos… Um peixe mordeu o isco. E então dá-se a luta. Entre a minhoca que se quer soltar do peixe, entre o peixe que se quer soltar do anzol, entre o pescador que não quer largar a cana. Entre Ulisses e Neptuno, o deus do Mar. Uma luta silenciosa. Só o rumor da água.
Depois… Nada. Só silêncio.
A noite cai. O peixe cai no alguidar. Os pescadores ali ficam. A espera continua… E eu espero que a minhoca ainda esteja viva, dentro da boca do peixe.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990