É na rotina da casa que, muitas vezes, consigo arrumar o pensamento. Pequenas tarefas sem poesia levam-me a encaixar sentimentos adiados. Apesar de me mover, deixo que o pensamento pare e se organize. Aconteceu há dias, quando ordenava a louça na máquina, e, nessa organização, meti mãos à obra no pensamento. Lembrei-me do desgaste que algo profissional me provocara durante meses e, perante a impossibilidade de ver a sua concretização, senti-me incrivelmente apaziguada. Entre canecas e pratos sujos, percebi que gosto de lidar com este sentimento dúbio: deixar de querer uma coisa que já desejei muito. Pode tornar-se um alívio. E, atenção, isto é extensível a tantas outras coisas que poderíamos estar agora mesmo a falar de uma relação amorosa. Tudo na nossa vida se liga porque o código dos sentimentos é, afinal, mais simples do que parece.
Quantas vezes não nos agastamos, desgastamos, consumimos, por uma relação que, feitas bem as nossas contas, nada nos trouxe a não ser experiência? E a experiência não garante que os erros não se repitam no futuro. Gostamos é de ver a experiência como o saldo positivo de uma enorme subtracção. É o que nos resta. É legítimo que tentemos confortar-nos com esse pensamento dilatado da experiência. Mas é só isso mesmo. Enquanto, no meu caso, fechava a máquina da louça para mais uma lavagem e dava por mim a respirar de alívio por aquilo que desejei e afinal não consegui, percebi então que a matéria do amor não se resolve nos ciclos da máquina, embora as epifanias aconteçam onde menos se espera.
Lembro-me perfeitamente de uma manhã em que, estando sentada na casa de banho ainda dormente da noite anterior, me apercebi de que me tinha libertado de um amor que não o chegou a ser, apesar da minha teimosia. Quando os mais velhos (agora essa já sou eu) nos dizem insistentemente que o tempo ajuda a curar tudo, têm razão, mas ninguém quer ouvir isto. Nós queremos ser levados pela dor, não lhe vendo ainda o fim. Um dia acabará por acontecer, sem que nada o preveja, e pode ser na casa de banho, junto à louça suja, a comer um gelado, na fila do supermercado ou a ouvir uma canção. Nós temos essa capacidade de regeneração, até quando não nos parece possível.
Comecei esta crónica por esse momento recente de um pensamento conclusivo que me trouxe uma paz absoluta no confronto com algo que não concretizei. Acabo, inevitavelmente, a falar de amor. Até porque acompanho de perto casos de gente que se consome com equívocos e se permite a ir nessa enxurrada. Já todos fomos e já todos também respirámos de alívio depois da bonança. Bonança é uma palavra que surge sempre depois da tempestade. Vou agora colá-la ao amor. Àquilo que nos pareceu ser o amor.
Não acredito muito na intermitência do amor. O amor é para ser vivido em linha contínua e não no toca-e-foge. A isso chamo jogo. Um jogo onde todos gostamos de cair. Perante demasiados solavancos devemos ponderar se o que temos pela frente é mesmo (o) amor. Bem sei que ponderar não é exactamente o melhor verbo para falar de amor ou paixão…
Acabar uma relação que viveu de solavancos, pode ser um grande alívio. Faz-nos sentir inteiros e limpos como a louça que sai da máquina. Demoramos muitas vezes a cumprir esse ciclo da libertação, do deixar ir sem regresso, do riso genuíno que sobra depois de um grande equívoco. Às vezes os amores foram só um grande equívoco, mas como saber se não os vivermos?!
Tudo podia ser simples como esse acto de organizar a louça na máquina. Também a podemos lavar à mão e chegar a conclusões enxutas. Às vezes temos de parar para dar ordem ao pensamento.
O coração ainda bate.