Lixo televisivo
Entre nós, o Big Brother, atualmente apresentado, e bem, por Cláudio Ramos, tem feito tanto ou mais pela comunidade LGBTQ+ quanto o ativismo arco-íris.
O Big Brother (BB) é um reality show da TVI, visto em média por cerca de um milhão de portugueses. Na cabeça de muitos, este milhão confunde-se com o milhão que recentemente votou na extrema-direita. Outros tantos, vêem o Big Brother e toda a reality TV como expressão de baixa cultura, destinada a alienar o povo, essa grande mole de gente potencialmente crítica, não fossem as armadilhas neoliberais do entretenimento. Não é bem assim, em ambos os casos.
Acompanho o Big Brother desde a primeira edição, aquela que Zé Maria venceu, em que Marco deu um pontapé a Sónia. Foi nessa primeira edição que participou Marta, a mesma que, passados 24 anos, apresenta com piada e isenção o diário noturno do BB. O dispositivo multicâmara 24 horas por dia do Big Brother é um sonho para qualquer documentarista que se interesse pela representação íntima dos seres humanos. Veja-se a seguinte pérola de angústia relacional, que teve lugar há uns dias, na edição que chega ao fim hoje à noite. Num fim de tarde lânguido, David, um rapaz de Alverca que gosta da angolana Niela, descalça-a e esta, que tende a resistir ao amor que sente, queixa-se: “Estou com frio nos pés, David!” Ele pergunta com a tranquilidade dos apaixonados: “Quem é que te aquece melhor os pés, as minhas mãos ou os chinelos?” Niela responde: “Tu. Mas depois largas-me e o frio volta.”
É pouco provável que um casal tivesse esta conversa, com tanto potencial alegórico, à frente de uma equipa de documentário, por mais observacional que fosse a sua postura; o documentário reduz a encenação, mas não a supera. Vejo o BB para estar em presença de aspetos quotidianos que não se conseguem filmar e que assim permanecem não-partilhados. Ninguém nos vê tão de fora como estes programas, que acabam por ser uma oportunidade única de autorrepresentação não-encenada.
O produtor do BB do Reino Unido, que os restantes países tendem a seguir, afirma que fazem a escolha dos concorrentes “a partir do novo tecido social, constituído por pessoas muito diversas, porque o Big Brother é acima de tudo uma experiência social, que vive, por isso, da variedade multicultural”. O programa, acrescenta o produtor, “deve abordar pontos de vista políticos, entre os quais as questões raciais, religiosas e LGBTQ+”. Convenhamos: quanto maior a mixórdia social, maiores são as possibilidades de conflito, das quais o programa vive. Ainda assim, não deixa de ser importante, para a comunidade LGBTQ+ mexicana, a vitória de Wendy Guevara, uma mulher “trans”, na Casa de Los Famosos (sucedâneo vip do BB) em 2023.
Entre nós, o BB, atualmente apresentado, e bem, por Cláudio Ramos, tem feito tanto ou mais pela comunidade LGBTQ+ quanto o ativismo arco-íris. O programa refere-se a todas as orientações sexuais em presença como se sempre tivessem existido; na realidade, faz o grande trabalho de as naturalizar. Nas galas há pessoas — há povo — a aplaudir concorrentes de todas as cores, idades, feitios e orientações. Este ano, havia no naipe inicial uma pessoa não-binária e um forcado, criando-se as condições para a desejada conflitualidade. Não correu bem para o programa porque o forcado revelou-se um homem doce e aceitante, o que teve piada, ainda que não a pretendida — e assim é muitas vezes.
No Reino Unido, o programa foi recentemente atacado pela extrema-direita nas redes sociais, que acusa o BB de apoiar a emigração e as causas LGBTQ+. Mais uma vez a extrema-direita a marcar pontos: já descobriu que o Big Brother é um programa popular colateralmente progressista — ainda a esquerda o encara apenas como lixo televisivo neoliberal. E depois espantamo-nos.