Que política de habitação haverá depois do PRR?
O PRR trouxe fundos para financiar o investimento público e aumentar a promoção de habitação pública. Porém, estão a chegar de forma desequilibrada ao terreno e já se receia que fique tudo na mesma.
Apesar de Portugal ser um país de proprietários (o mercado de arrendamento tem um peso muito residual para a média europeia), o acesso à habitação é um dos problemas que mais preocupam os portugueses. É um tema que tem estado no epicentro das notícias desde 2017, e tem-se mantido central nas discussões públicas, políticas e partidárias. O ano de 2017 trouxe o lançamento da Nova Geração das Políticas de Habitação, no Governo da “geringonça” liderado por António Costa, que incluía um pacote legislativo com 17 medidas, entre elas, o programa de Arrendamento Acessível e o Primeiro Direito – Programa de Apoio ao acesso à Habitação.
O programa de Arrendamento Acessível revelou-se um falhanço total — o benefício de isenção fiscal aos proprietários que colocassem no mercado de arrendamento acessível (com rendas 20% abaixo da mediana do mercado) não foi suficientemente atractivo. Actualmente, existem menos de mil contratos de arrendamento em vigor, o que significa uma irrelevante quota de 0,12% do total.
Por outro lado, o programa Primeiro Direito acabou por assumir um enorme protagonismo, não só pela esperança que ele trazia na resolução de problemas habitacionais das populações mais carenciadas, mas também (ou sobretudo) porque foi aquele que mais músculo financeiro recebeu no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), para resolver os problemas de carência habitacional detectados em 26 mil famílias em todo o país.
A grande novidade deste programa, e deste PRR, é que pela primeira vez houve um financiamento comunitário destinado a resolver problemas de carências habitacionais da população. Sabe-se que os 26 mil fogos que servem de base ao programa — e que foram contabilizados pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) antes de as câmaras começarem a desenhar as suas necessárias (e obrigatórias para efeitos de financiamento) Estratégias Locais de Habitação — são uma pequena migalha no universo de necessidades que têm vindo a ser elencadas em todo o país.
De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, numa informação divulgada em Maio deste ano, são precisas quase 137 mil casas para dar resposta a todas as situações de sobrelotação ou de famílias a viver em situações habitacionais indignas, como barracas ou outros alojamentos improvisados, identificadas em Portugal. Depois do Censos realizado em 2021, o mesmo INE também demonstrou que há mais de 700 mil casas devolutas em Portugal.
Todos estes problemas e desfasamentos acontecem a par de uma galopante subida dos preços, identificada também nesse mesmo ano de 2017, que começou a afastar a classe média do acesso à habitação — o que continua a ser realidade, mesmo depois de muitas medidas aprovadas e de três governos depois. No início desta semana, um relatório da OCDE apontava Portugal como o país da União Europeia onde o desfasamento entre os preços das casas e a realidade salarial mais se agravou nos últimos anos.
O Barómetro da Habitação, lançado em Outubro pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, revela como o acesso a uma casa condiciona as decisões de futuro de uma em cada quatro pessoas questionadas. A preocupação crescente com o tema transformou-se em contestação na rua: entre Abril de 2023 e Janeiro de 2024 houve três grandes manifestações pelo direito à habitação que mobilizaram dezenas de milhares de portugueses em várias cidades do país.
No estudo O Mercado Imobiliário em Portugal, publicado em 2022, a Fundação Francisco Manuel dos Santos procurou um conhecimento aprofundado das várias dimensões dos mercados imobiliários (o PÚBLICO fez uma série de trabalhos sobre o tema), para facilitar a definição de políticas habitacionais adequadas à sociedade actual.
Nesse estudo, João Lourenço Marques, investigador da Universidade de Aveiro, foi o co-responsável pelo capítulo que procurou desenhar o mapa da habitação inacessível em Portugal. Nele demonstrava que os problemas de acesso à habitação extravasam as áreas metropolitanas e detectavam-se também em áreas de baixa densidade e de declínio populacional.
Por isso, um programa como o Primeiro Direito — que é de índole nacional e permite às 308 autarquias desenhar uma estratégia e candidatarem-se a apoio público para financiar as soluções — surgia, também, como uma grande oportunidade de começar a resolver os problemas em todo o território. Porque pressupõe a resolução de problemas de indignidade habitacional e também porque preconiza o aumento do parque público de habitação. Afinal, havia já o entendimento de que não é com 2% do parque habitacional que o Estado consegue responder às carências da população, muito menos regular o mercado e influenciar os preços.
O Primeiro Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação tardou em sair do papel, porque impunha aos municípios a elaboração de uma Estratégia Local de Habitação, na qual se fizesse um diagnóstico a contar os quatro tipos de indignidade habitacional que podiam ser resolvidos com recurso a este financiamento público: precariedade (o que incluía pessoas em situação de sem abrigo), insalubridade e insegurança, sobrelotação e inadequação.
Os municípios tiveram diferentes ritmos na execução deste documento estratégico. Entretanto, eclodiu a pandemia de covid-19, o que trouxe o agravamento de algumas situações de carência habitacional. E trouxe também o mecanismo de recuperação Next Generation EU, que acabou por desenhar o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) de Portugal, com um total de financiamento de 16,6 mil milhões de euros, no qual a componente Habitação recebeu a fatia de leão: 2,7 mil milhões para a componente Habitação, acrescidos de 330 milhões afectos às componentes Respostas Sociais e Eficiência Energética em Edifícios. Posteriormente, com a reprogramação, a componente Habitação passou a ter uma dotação total de 3,2 mil milhões de euros.
Oportunidade perdida?
Desde que o então ministro da Habitação Pedro Nuno Santos anunciou que as primeiras 26 mil soluções habitacionais tinham direito a financiamento integral por parte do PRR, instalou-se uma verdadeira corrida aos fundos. O ponto de partida não tinha sido o mesmo — alguns municípios já estavam adiantados. Mas a meio da corrida percebeu-se que os resultados já não teriam nada que ver com priorizar casos mais graves ou dar resposta a preocupações de coesão territorial, de forma a acudir a todo o território.
É, de facto, uma corrida, e da qual sairão vencedores apenas os “corredores mais velozes” — leia-se, aqueles que têm mais recursos técnicos e financeiros. Cedo se percebeu que a execução do PRR poderia até agravar as desigualdades no acesso à habitação.
A consulta regular aos dados que os arquitectos Helena Roseta, Sílvia Jorge e Aitor Varea Oro disponibilizam no portal O Contador, de acesso público e gratuito, permite acompanhar a forma como se desenrola essa corrida mensalmente. E ver, inclusive, os verdadeiros “sprints” que os municípios de Lisboa, Oeiras e Matosinhos conseguiram protagonizar nos últimos dois meses. A tendência confirma-se: ao nível do financiamento alavancado, existem enormes diferenças entre os municípios e, ao nível do território, as verbas concentram-se tendencialmente em apenas duas regiões (Área Metropolitana de Lisboa e Região Norte).
De acordo com os dados, são já mais de mil milhões de euros para financiar 13.525 soluções habitacionais. Mas a grande preocupação, e um eventual grande problema, ainda não visível em nenhum gráfico dinâmico, nem nos anúncios dos concursos públicos que têm vindo a ser lançados no Diário da República, é a exequibilidade de as obras estarem concluídas a tempo.
“Se as obras não estiverem prontas em Junho de 2026, cai o financiamento e não haja ilusões porque a Europa não vai, garantidamente, prorrogar os prazos”, alertou o ministro da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, na altura em que anunciou o “ovo de Colombo” que o Governo ia tirar da cartola para agilizar os projectos: convidar as autarquias a assinarem um termo de responsabilidade de forma a não terem de esperar pela aprovação do IHRU, o organismo público por onde tinham de passar todos os projectos.
A solução arrepiou os especialistas em transparência, que alertam para a elevada possibilidade de existir fraude e corrupção numa medida que permite às câmaras receber primeiro o financiamento e avaliar o projecto depois. Apesar das críticas, os termos de responsabilidade têm continuado a ser assinados — depois de terem sido assinados contratos no Alentejo, no Algarve, no Norte e no Centro, já só falta assinar na região de Lisboa.
Porém, estes termos de responsabilidade não são públicos, nem publicados. E, ao que apurou o PÚBLICO, junto de fonte municipal, estes documentos incidem apenas em algumas partes dos projectos que as autarquias haviam apresentado ao IHRU. Por isso, os municípios ficam sem nenhuma garantia de que depois do PRR, ou no novo orçamento do Estado, vai continuar a haver financiamento público para concretizar os projectos habitacionais que as autarquias foram convidadas a desenvolver. Ou, até, se terão de ser elas a devolver o dinheiro público no caso de o prazo terminar sem a obra estar concluída e sem este ser prorrogado.
As autarquias estão a correr algum risco, como demonstra um estudo elaborado pela equipa de responsáveis da plataforma O Contador. Os investigadores optaram por analisar as operações de construção ou aquisição de terrenos para construção — por serem estas que contribuem directamente para o aumento do parque de habitação pública, que, recorde-se, é um dos principais objectivos do PRR e uma das medidas mais consensuais no âmbito das políticas de habitação.
A amostra integrou 87 operações, promovidas por 42 municípios, de que deveriam resultar 3321 fogos — o que representa 25% dos fogos já contratualizados no âmbito do PRR e 42% do financiamento já alocado. Porém, se estes contratos anunciados no portal Mais Transparência forem cruzados com a informação disponibilizada no Portal Base (onde são publicitados os concursos públicos) e com o próprio Diário da República, percebe-se que apenas 132 casas estão já concluídas e que há 1416 obras com contrato de empreitada celebrado. Mas que há 857 com concurso de empreitada a decorrer; e 884 com concurso de empreitada para lançar.
Ou seja, 69% dos municípios com candidaturas aprovadas para operações de construção estão mergulhados na incerteza de conseguir ver os prazos cumpridos. Em causa estão 1741 fogos, que correspondem, em financiamento, a 24% dos 957 milhões de euros já contratualizados do Primeiro Direito.
Recorde-se que das câmaras municipais depende apenas o lançamento dos concursos — uns de empreitada (quando já existe um projecto aprovado), outros de concepção-construção (quando ainda é preciso fazer o projecto; o próprio IHRU lançou alguns). No caso dos concursos de empreitada, o prazo mínimo normal para as obras é de 18 meses, sem contar com o problema dos atrasos e de eventuais incapacidades a alegar pelos empreiteiros.
No caso dos concursos de concepção-construção, o risco de derrapagem dos prazos é ainda maior, porque é necessário executar anteprojectos e projectos de execução, depois fazer estudos prévios da obra e só depois começar a construir.
A vida depois do PRR
Para já, ainda ninguém sabe o que vai acontecer depois do PRR. Por enquanto, mantém-se o sprint na recta final, e o esforço na contratualização e na execução dos contratos. A prioridade é não perder o dinheiro — ou tentar não perdê-lo, porque, a manterem-se as expectativas invocadas por Castro Almeida, é, muito provavelmente, o que acontecerá. O ministro diz que não haverá prorrogação dos prazos, depois de os projectos terem estado meses à espera de aprovação do IHRU e de avançarem agora com a assinatura de um termo de responsabilidade, atirando a avaliação para depois.
Mas, em paralelo com estas preocupações de cumprimento ou não dos prazos, agigantam-se outras. João Lourenço Marques, que tem continuado a investigar as questões relacionadas com a habitação, diz que não existe uma “bala de prata” para resolver os muitos problemas que existem no mercado da habitação. O que existe, afirma, é uma percepção errada dos problemas e um desconhecimento real do território. O investigador sustenta esta afirmação com o trabalho que tem estado a fazer para a elaboração do Plano Regional de Ordenamento do Território da zona Centro, para o qual as questões de habitação foram, naturalmente, estudadas.
“Fizemos uma reunião com 150 entidades e individualidades e lançámos algumas questões concretas, e percebemos que as percepções estão muito erradas. Há uma falta de noção do que é a realidade”, diz João Marques, dando a dinâmica demográfica como exemplo. “Ainda se acredita que o declínio demográfico se combate com as políticas de natalidade, quando se sabe que elas têm impacto zero no curto prazo e impacto muito reduzido a médio prazo”, relata.
Para João Marques, o problema do acesso à habitação tem um diagnóstico estruturante, é relativamente pouco variável. “O que tem sido variável são as políticas. É mais fácil rasgar medidas e anunciar novas, sem se querer saber muito bem o impacto que cada uma delas pode ter.”
Monique Borges, que trabalha com João Marques na unidade de investigação sobre Governação, Competitividade e Políticas Públicas (Govcopp) da Universidade de Aveiro, tem-se ocupado em perceber como é que programas públicos como o Primeiro Direito e o Porta 65 Jovem (outra medida da Nova Geração das Políticas de Habitação destinada a apoiar o arrendamento) estão de facto a chegar ao terreno, desde o planeamento até à sua concretização. Uma das conclusões que já pode avançar é que os que mais precisam têm sido aqueles que mais dificuldades têm tido no acesso ao financiamento público.
E isso acontece no Primeiro Direito, em relação ao qual, diz, são as famílias que precisam de soluções que encontram mais entraves burocráticos para aceder aos recursos; assim como no Porta 65, em que se está a estudar a relação entre os pedidos de financiamento a este programa e as características sociais e territoriais de quem lhe acede. E um resultado óbvio é que têm sido as pessoas mais qualificadas que têm conseguido aceder aos apoios.
João Marques refere que o principal problema é mesmo o modo como as políticas públicas são desenhadas, e que não trazem incorporada uma verdadeira forma de avaliar o seu impacto. “Têm de haver princípios orientadores numa política mais macro, de médio e longo prazo, mais estruturante. Ao invés disso, temos tido políticas reactivas, em contraciclos”, lamenta o investigador.
O regresso do PREC
Há hoje um consenso universal de que o acesso à habitação continua a ser o maior problema do país. “Onde não há consenso é nas causas e, portanto, nas soluções”, sublinha Simone Tulumello, investigador auxiliar no Instituto de Ciências Sociais na Universidade de Lisboa, e um dos fundadores da Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação.
Esta rede nasceu no início de 2020, ainda antes de o contexto pandémico da covid-19 eclodir em Portugal, por iniciativa das equipas de seis projectos de investigação, em curso ou concluídos, financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e centrados na habitação. No seio da investigação académica tem-se procurado medir e avaliar os efeitos dos resultados das sucessivas medidas legislativas que têm vindo a ser anunciadas. De um modo assumidamente simplista, Tulumello aponta para duas grandes posições a polarizar o debate e que estão associadas aos dois lados do espectro político, com a esquerda a enfatizar a ausência de políticas e a direita a apontar para o seu excesso.
“A esquerda lamenta a ausência de uma estratégia de longo prazo, especialmente na promoção de habitação social. A direita, pelo contrário, defende que o Estado tem feito demasiado, mas no sentido de limitar, através de burocracia, regras e normas, as potencialidades do mercado para construir mais habitação e, assim, baixar os preços”, explica o investigador. Para concluir: “A questão é que os dois lados têm alguma razão e estão bastante errados ao mesmo tempo.”
Estas posições estão escritas no livro Habitação para além da “crise”: Políticas, conflito, direito, que Simone Tulumello vai lançar a 4 de Julho, pela Tigre de Papel, em Lisboa. E as aspas na palavra “crise” são uma provocação assumida, que pretende lembrar que se fala de crises sucessivamente há 50 anos, e que, de facto, “para muitas e muitos — e sobretudo para os grupos racializados – a habitação sempre foi uma crise”.
Tulumello avisa que o seu livro é escrito “por um investigador que tem participado nas lutas pela habitação, especialmente com a Habita – Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade, com mais intensidade nos anos em que se foi constituindo o movimento pela habitação em Lisboa, nomeadamente entre 2014 e 2018” e que, com ele, quer “contribuir para um debate que em primeiro lugar é político, na óptica de quem pensa que a academia não pode fugir do seu envolvimento político”. “Este é um ‘livro académico engajado’ — e, espero, um livro que nos faça pensar sobre o conflito de que precisamos, em prol do direito à habitação.”
Com algum desassombro, Simone Tulumello defende na sua obra a necessidade de se voltar ao espírito que em Portugal se viveu na altura do PREC. Porque foi nesse período algo conturbado da democracia que, defende, se deram passadas importantes na solução dos problemas prementes em termos habitacionais, nomeadamente através da ocupação de habitações vazias e devolutas.
Ou ainda, como recorda, no processo do SAAL – Serviço de Apoio Ambulatório Local, onde se assistiu a uma convergência entre movimentos sociais e jovens arquitectos, engenheiros e estudantes com aspirações à transformação social que foram enviados para constituir as equipas técnicas locais e que se revelou como crucial na formação de muitos dos arquitectos que, como Álvaro Siza Vieira, escreveram nos anos seguintes a história da profissão em Portugal.
“Precisamos de voltar mais uma vez ao PREC, mas desta vez não à sua história, antes ao seu espírito: o de um processo de organização popular capaz de construir espaços de autonomia e, ao mesmo tempo, de desafiar o direito — isto é, de forçar a transformação estrutural do Estado. Trata-se de encontrar, nas lutas do presente, as marcas do espírito do PREC”, defende Tulumello. E onde se pode encontrar, hoje, o espírito do PREC? “Está no processo que levou à Caravana pelo Direito à Habitação e nas tentativas mais recentes de articular questões de classe, raça e género em torno da questão da habitação.”
O estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos estão disponíveis para download gratuito em ffms.pt/estudos/estudos
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