Projecto de Martim Sousa Tavares coloca 50 idosos de lares de Aveiro no palco
Cantar-o-Lar culmina num espectáculo no Teatro Aveirense. Neste domingo, pelas 15 horas, os holofotes vão virar-se para os mais velhos.
As pernas até podem já não ter a agilidade de outrora, mas a vivacidade ninguém lhe tira. Tanto assim é que, no domingo, assim que entrar no palco do Teatro Aveirense, vai deixar o andarilho encostado a um canto. “Vou ser a primeira a entrar”, conta-nos, ao mesmo tempo que ensaia a sua entrada em cena. Laura Catarina, de 93 anos, vai ser uma das intérpretes de Cantar-o-Lar, espectáculo criado no âmbito de um projecto que está a levar a música a quatro lares de Aveiro e que conta com a curadoria de Martim Sousa Tavares, com Stephanie Rowcliffe, da Orquestra Sem Fronteiras. Depois de seis meses de encontros e ensaios, Laura e os companheiros de interpretação estão ansiosos para demonstrar que há ainda muita juventude e força dentro deles. Até mesmo nos que já não passam sem a bengala ou o andarilho para andar.
“Não foi bom, foi muito bom”, avaliava Maria do Céu Câncio, outra das utentes do Centro Social Santa Joana Princesa que irá partilhar o palco com os intérpretes dos lares Centro Paroquial S. Bernardo, Florinhas do Vouga e Fundação Casa do Pessoal Segurança Social e Saúde do Distrito de Aveiro. As colegas Rosa Gaspar e Aurora Reis corroboram, mas, curiosamente, a avaliação mais marcante é manifestada em silêncio. Hermínia Gordinho, de 84 anos, acabou por perder a voz, em Agosto do ano passado, devido a um AVC, mas isso não a impediu de se juntar ao coro e de participar no espectáculo. “Participa à maneira dela, com os sons que consegue fazer e a bater palmas”, destaca Liliana Baladares, animadora naquele lar aveirense. “A D. Hermínia estava com a auto-estima em baixo e foi extraordinário o efeito que este projecto teve nela”, nota a animadora.
O Cantar-o-Lar surge no âmbito de uma encomenda da Aveiro 2024 – Capital Portuguesa da Cultura e teve início em Janeiro. Desde então, foram desenvolvidas oficinas quinzenais em cada um dos lares participantes, assim como um ensaio geral, já no palco do Teatro Aveirense. “Mais do que intérpretes, eles são co-criadores. Através de dinâmicas muito informais e descontraídas, conseguimos fazer com que estas pessoas fossem criando as letras e as músicas”, avalia Beatriz Mendes, da direcção artística do projecto. “São pessoas muito ricas em termos de histórias e também muito criativas. Foi muito fácil termos material para trabalhar”, prossegue. E até mesmo os seus condicionalismos acabaram por tornar-se “material com potencial artístico”. “Também exploramos um bocadinho os andarilhos, as bengalas e as cadeiras de rodas”, acrescenta.
Artistas cheios de experiência
Em palco vão estar cerca de 70 “artistas”, entre seniores, músicos e animadoras dos lares, a interpretar temas que giram à volta da memória e elementos identitários de Aveiro, como é o caso dos ovos-moles, elemento central da música que o grupo do Centro Social Santa Joana Princesa estava a ensaiar naquela manhã. “Ovos-moles são maravilha que seduzem toda a gente/E depois de os comer fica tudo contente/Como reza o conto tudo começa com o ponto/Juntam-se as gemas batitas/Não tarda a serem comidas”, cantarolavam, sem desafinar. Muito ajuda o facto de, entre o grupo, estarem uns quantos elementos já habituados a cantorias. “Toda a vida cantei. No coro da igreja, nos cortejos, nos teatros”, testemunha Amélia Ferrão, de 97 anos. “As pessoas da comunidade juntavam-se e faziam teatros para angariar dinheiro para construir o infantário e depois o lar”, enquadra Liliana Baladares, notando que, entre aquele grupo de 12 cantores, estava um dos grandes mentores do centro social e seu antigo dirigente, Zacarias Andias.
Igualmente experiente em apresentações públicas é Manuel Pinto, de 91 anos. Foi músico, da Banda dos Bombeiros Velhos de Aveiro, e, segundo os companheiros de grupo, “tem boa voz para cantar”. No domingo, a partir das 15h00, e juntamente com os restantes elementos do coro, dará o seu melhor, na certeza de que o Cantar-o-Lar não terminará aí. “Nas semanas a seguir já vamos voltar a estar com eles para preparar um segundo espectáculo, para apresentar em Dezembro”, anuncia Beatriz Mendes.
Os utentes agradecem e prometem voltar a estar à altura. “Eles gostam de mostrar que são capazes e conseguem”, vinca a animadora do lar de Santa Joana, exaltando o impacto positivo que projectos como este têm nos mais velhos, especialmente depois de uma pandemia “que deixou marcas”. “É uma forma de os incentivar e de os levar a sair fora de portas”, acrescenta, sugerindo que possam também ser apresentados espectáculos e filmes em hora de matiné, permitindo que os utentes dos lares possam usufruir mais da cultura. E já que é para pedir, fica também a proposta da Maria do Céu Câncio: levar o Cantar-o-Lar a Lisboa. “Tenho lá o meu filho mais novo e gostava de o ter na assistência”, argumenta. Enquanto isso não acontece, as atenções concentram-se na exibição deste domingo.