Uma em cada dez mulheres já sofreu violência física ou sexual na intimidade

Vítimas privilegiam pessoas próximas para relatar as situações de abuso, pelo que muitos casos não chegam às autoridades oficiais. APAV defende investimento na prevenção para evitar repetir padrões.

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Segundo o inquérito do INE, 22% das mulheres sofreram algum tipo de violência na intimidade, em comparação com 17,1% dos homens Manuel Roberto
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Uma em cada dez mulheres em Portugal (10,3%) já sofreu violência física ou sexual na intimidade. O número aumenta para 22,5% se incluirmos a violência psicológica, num universo em que mais de 1,3 milhões de pessoas admitem ter sofrido algum tipo de violência por parte do parceiro na intimidade. Os dados constam do Inquérito sobre Segurança no Espaço Público e Privado, feito em 2022, o primeiro do Instituto Nacional de Estatística (INE) em parceria com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) sobre violência doméstica e de género, e que foi apresentado esta quinta-feira em Lisboa.

Segundo o inquérito, 22% das mulheres sofreram algum tipo de violência na intimidade, em comparação com 17,1% dos homens. A proporção de violência em contexto de intimidade com parceiros anteriores é muito mais elevada do que com parceiros actuais, revela o INE. Mais de três quartos da população considera que a violência exercida contra as mulheres por parte dos parceiros é “comum” ou “muito comum”.

As vítimas privilegiam familiares, amigos e pessoas próximas para relatar as situações: 50,7% reportaram a situação às pessoas próximas quando ainda estavam no relacionamento com o abusador e 43,8% quando a relação já tinha terminado. Cerca de metade das vítimas de violência na intimidade decidiu falar sobre o caso com uma autoridade oficial (polícias ou associações de apoio à vítima) quando a violência foi infligida por um parceiro anterior (43,8%). Em contraste, 21,4% das vítimas reportaram o caso às autoridades quando o abusador ainda era o parceiro actual.

“É um dado interessante porque é completamente diferente do que a APAV regista, é uma realidade que nós não vemos”, disse Daniel Cotrim, responsável pela área de Violência Doméstica e de Género da APAV, ao PÚBLICO. No caso desta associação, 53% dos pedidos de ajuda são feitos pelas próprias vítimas e não por terceiros.

Os dados da APAV e do INE indicam que as vítimas demoram muito tempo a tomar a decisão de pedir ajuda. “É importante aumentar o prazo de prescrição e criar mecanismos seguros onde as pessoas possam denunciar e, a seguir, dar-lhes o apoio especializado. Para crimes de violência doméstica, não há prazo de prescrição, mas noutros crimes de violência de género há”, defende Daniel Cotrim.

Muitos casos não chegam às autoridades oficiais

Os dados apresentados pelo INE indicam que muitos dos casos de violência doméstica, como são contados a familiares ou amigos, não chegam às autoridades oficiais. Em 2022, foram denunciadas mais de 30 mil crimes de violência envolvendo o parceiro. E mais de 210 mil pessoas reportaram ter sido vítimas de violência na intimidade nos 12 meses anteriores.

“Há sempre o factor da vergonha. Uma denúncia de violência doméstica tem impacto na vida das vítimas. É importante que organizações públicas e privadas sejam criativas, que criem mecanismos que permitam às pessoas fazerem as suas denúncias e os seus pedidos de ajuda de forma segura, privada, sem o receio de que venham a ser descobertas”, afirma.

Dália Costa, professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), convidada para a apresentação, afirmou que “há um problema social gravíssimo de violência em Portugal para o qual a sociedade não quer olhar”.

“Investir na prevenção de certos crimes, como violência doméstica, é uma escolha política, não é algo que ocorra naturalmente”, acrescenta. “Ou assumimos o problema social que temos e há dotação orçamental para o trabalhar de forma séria, com recursos humanos, ou daqui a dez anos vamos estar reunidos a falar do mesmo tema”, disse ainda.

Daniel Cotrim também considera que, para diminuir o número de casos de violência doméstica em Portugal, o grande investimento público tem de estar direccionado para a prevenção. “É um trabalho que tem de ser feito desde cedo, em diferentes ciclos escolares, envolvendo comunidades e famílias de forma transversal, e adaptado às diferentes realidades regionais, locais, étnicas e culturais. Prevenção para evitar que gerações actuais e futuras repitam o fenómeno transgeracional que é a violência, fazer aquilo que viram ser feito”, disse.

As casas de abrigo e as linhas telefónicas são os serviços mais conhecidos pelos inquiridos. 81% afirmaram conhecer linhas telefónicas de ONG de apoio às vítimas, revela o inquérito.

De acordo com dados da APAV, nos últimos cinco anos houve um aumento de 10% do número de pessoas que vão pedir ajuda à organização por todo o tipo de violência. Em 2021, a associação registou 18.912 denúncias de crimes de violência doméstica. Em 2023, o número aumentou para 22.375. "Os resultados sustentam que as denúncias de crimes como o de violência doméstica devem ser multiplicadas por seis para se obter uma aproximação do valor real", afirma Dália Costa.

Vítimas de violência na infância foram as que menos denunciaram as suas experiências

O inquérito revela ainda que mais de 1,3 milhões de pessoas entre os 18 e os 74 anos sofreram algum tipo de abuso emocional ou físico pelos pais (18,6%). Os que relatam ter sido mais afectados por algum tipo de violência durante a infância são os idosos entre os 55 e os 74 anos. O estudo revela que mais de 176 mil pessoas foram vítimas de abusos sexuais na infância, 3,5% das mulheres e 1,1% dos homens, sendo que os agressores identificados foram maioritariamente homens (3,3%).

Mais de metade das vítimas de violência na infância sofreu algum tipo de violência ao longo da sua vida (65,4%). Dentro deste universo, 37,7% das vítimas referiram que a violência ocorrida na idade adulta foi no contexto da intimidade. O inquérito revela ainda que, entre as vítimas de violência na infância, 47,5% assistiram a situações de violência psicológica, em que o pai humilhou a mãe, enquanto 27,3% viram situações de violência física.

Em comparação com as restantes situações, as vítimas de violência na infância foram as que menos denunciaram as suas experiências. Menos de um terço falou com alguém próximo ou com alguma entidade sobre o que aconteceu.

O INE também revela que mais de metade das vítimas de todos os tipos de violência (54,4%) afirma sentir-se “severamente limitada” na realização das suas actividades actuais.

Mulheres são maioria das vítimas

À excepção de casos de violência física em espaço público, em que a proporção de vítimas masculinas (19,13%) é superior à de vítimas femininas (13,1%), as mulheres têm proporções mais elevadas em todos os tipos de violência. A proporção de vítimas femininas de violência sexual no espaço público é o dobro (3,9%) da observada nos homens (1,9%).

Em contextos laborais, 12,3% das mulheres afirmam ter sido assediadas sexualmente, mais do dobro dos 5,2% dos homens vítimas de assédio no trabalho. Mais de 76 mil mulheres foram vítimas destes tipos de actos nos 12 meses anteriores ao inquérito (2,2%), e cerca de 199 mil (5,6%) nos cinco anos anteriores. Das 12,3% do total de mulheres vítimas, 11,6% delas identificaram agressores homens.

Outro fenómeno analisado pelo inquérito foi o assédio persistente, ou stalking. Uma em cada cinco pessoas já foi vítima deste crime (20,7%). Este é um fenómeno mais frequente entre as mulheres, a população mais jovem e mais escolarizada.

O inquérito foi realizado em 2022 e destina-se a contribuir para a consolidação de um sistema de informação estatístico europeu dedicado à violência de género e à violência doméstica, sendo financiado pela Comissão Europeia, podendo vir a ser repetido dentro de cinco anos, caso haja financiamento. Foi aplicado em todo o território nacional, tendo sido obtidas no total 11.346 entrevistas.

Texto editado por Gina Pereira

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