Retiro muito prazer do tempo que passo a conversar e a ouvir, enquanto me demoro numa ou noutra palavra (ou ideia), percebendo ali mesmo que estou a aprender, que me descubro mais nesse instante, enquanto também me reconheço no outro. Pode ser transformador esse momento da identificação. Há quem pense como nós, embora já soubéssemos que não éramos uma ilha. O exercício vem de longe: talvez comece no recreio de forma menos consciente, se estenda à adolescência quando procuramos afinidades e se agrave, positivamente, chegados aqui, à idade maior. Esta é a idade maior. Sem um número fixo, a não ser o da consciência que nos chega em momentos diferentes também, dependendo do que já vivemos ou de quem conhecemos.
Almocei com a Graça esta semana. Tínhamos uma exposição para ver juntas. O meu dia já estava desenhado anteriormente com uma reunião para os lados do rio. Acrescento aqui que ver o rio, e este pensamento surge só agora, nos abre o horizonte. Estar perto da água pode aliviar-nos da asfixia quotidiana.
A reunião já tinha acontecido com várias mulheres e fui ao encontro, antes da Graça, da Lúcia, mulher a quem a vida trouxe pontos de luz que ela soube agarrar devidamente. Tenho a certeza de que a vida nos vai acenando com várias pistas ao longo dos anos. É preciso estar atento e forte, como nos lembra a canção que ecoa sempre em mim.
Graça, tal como eu, chegou mais cedo. Pressenti que havia de querer tactear o território onde nos encontraríamos: um espaço verde e fresco, onde as palavras acabariam por se estender sem vontade de conhecerem o fim.
Penso que nas pessoas que já somaram experiências de vida acaba por haver uma sintonia, escolhas que se anunciam sem alarido, não haver sequer espaço para a discordância, porque tudo se pauta pela vontade de ver no outro a descoberta. Alinhadas na ementa, seguimos com o que tínhamos em mente: conversar sem preocupações. Às histórias dela, acrescentei as minhas. Somos duas mulheres com mais de 50 anos, filhos, amores e desamores. Sabemos do potencial que o risco tem. Arriscámos várias vezes.
Fui escutando Graça deliciada, com mais perguntas. A dada altura falámos de maldade, da maldade que espreita até das pessoas menos prováveis e aparentemente próximas e ela disse: “é sempre o medo”. Eu, que lhe deixava fluir o pensamento, parei ali mesmo. “Achas Graça? É o medo?”. E, depois, na tal sintonia, demos forma às palavras, como se conjugássemos um novo verbo: medo de não ter, medo de perder, medo de não ser. Estas palavras ficaram a flutuar, primeiro ali, rente ao jardim, depois repetiram-se dentro de mim vezes sem conta, concluindo mais tarde que Graça tinha razão. É sempre o medo que nos leva ao pequeno e grande mal e o medo tanto nos tolhe como nos faz avançar com um objectivo, mas um objectivo enviesado. Penso que vale a pena voltar a esta ideia do que não temos, do que não somos (ou fomos), do que perdemos. Talvez parte das nossas acções possam ser revistas a partir daqui, para depois percebermos como agimos e o que dizemos. E, como tantas vezes, o que dizemos magoa o outro.
A dada altura, enquanto ouvia a Graça, apercebi-me de que já não iríamos à exposição. Mais uma vez, sem alarido e em sintonia, ela disse: “já não vamos, pois não?”. E sorrimos, porque a conversa se revelava muito mais importante do que o que tinha sido o ponto de partida para este encontro. A nossa exposição sentimental era definitivamente mais importante do que o que estava combinado. Era de novo um recreio, agora na idade maior. As perguntas não se esgotam com os anos. Às vezes mudam em função do que já se viveu. Só isso.
Saímos dali, abandonando aquele jardim que se presta à escuta, e fomos passear pela cidade. Há recantos que ainda nos levam a ser turistas na própria cidade, insistindo em mostrá-la a quem escolhemos.
Foi um dia luxuoso. Este é que é o meu verdadeiro luxo: cultivar a amizade. Poder ouvir e perguntar. Adiar um plano porque a conversa nos faz querer viver o presente. Ficar. Trazer para casa pistas novas para os meus dias.
Um privilégio da idade maior.
O coração ainda bate.