O ciclo preparatório onde andei, a poucos metros da casa dos meus pais, está finalmente a ser recuperado. Há 50 anos, a Vila Corina apresentava-se imponente no seu ladrilho azul-bebé com os vitrais policromáticos, onde aprendi a tocar flauta e muito rapidamente embirrei com o professor de música. Chamava-se Pedro, se a memória não me trai. Percebo agora que seria um suplício dar aulas aos miúdos da aldeia, ele nos seus jeans justos, cabelo despenteado, um ar negligé que pouco teria a ver com aquele ambiente. Eu não gostava das aulas de música. As pautas sempre foram rígidas para mim: gosto que o espaço não me comprima o raciocínio.
Ainda assim, ao longo destes quase 50 anos, fui olhando para os vitrais com nostalgia. A nostalgia é um sentimento intravenoso que teima em ficar em nós. Em vez de um BI teríamos uma bula com a advertência (entre outras): a nostalgia pode ser aditiva. É.
Instalamo-nos no passado como quem estende a toalha no areal.
Os vitrais resistiram ao tempo, partidos aqui e ali, do que me foi sendo possível ver das janelas da casa dos meus pais. Apesar de muda e silenciosa, nesta mansão de Corina era como se me fosse possível ouvir ainda o som desengonçado da flauta, vendo Pedro, o professor sempre estremunhado, sem esboçar um sorriso. E eu a querer que as aulas acabassem para voltar para casa e poder ouvir as minhas músicas. As escolhidas. Sempre fui muito ciosa dessa possibilidade da escolha. Mais tarde chamei-lhe privilégio.
Vi então, pela primeira vez, o meu ciclo (que foi várias coisas depois de ser escola) descascado desse azul-bebé. A força da memória não desbota a cor que consigo ver nítida. Talvez na recuperação em curso possam preservar a fachada como a conhecemos. Sempre me doeu ver um sítio tão bonito ao abandono. Talvez me doesse mais a mim por ter sido quase feliz lá. O ‘quase’ engloba a hepatite que me deixou de cama um mês, o meu primeiro desgosto amoroso, a semanada curta que não trazia prazer aos dias todos. Mais tarde é que se percebe que o prazer pode não ser para todos os dias. Lá estão as escolhas a acenarem-me: é importante fazê-las.
A escola, adaptada à casa da afortunada Corina, abria logo com a secretaria, um lugar que sempre temi porque me pediam coisas estranhas: fotografias pequenas, papéis em branco por preencher. Ir à secretaria era como trazer problemas para casa. Evitava por isso essa ala. Tenho presente ainda o cheiro da madeira escura, bem polida, que parecia o remate de uma peça bonita. A madeira ondulava pela casa. Forrava os corredores, as escadas, painéis avulsos pelas salas, em que os tectos pintados à mão estavam imaculados. Ainda bem que não havia telemóveis para registar o que a minha memória preserva. Faço uma viagem mental que me leva aos sítios todos: o bar improvisado, cheio de gente apressada onde eu mal chegava ao balcão. Senti-me crescida da primeira vez que lá estendi uma nota de 20 escudos. Talvez integrada seja a palavra certa. Foi difícil convencer os meus pais de que eu precisava daquela nota para me sentir gente.
Continuo a ver, do sítio onde agora me estendo ao sol, a Vila Corina. O meu ciclo. A casa abandonada. A mansão agora em obras. Ao longo de décadas conheceu tantas fases diferentes. Como nós, que vamos mudando com a secreta esperança de que a fachada (a nossa) não se altere assim tanto. Esqueci-me de ver se o pára-raios continua ali. Parecia uma roldana de um parque de diversões. Bastava vê-lo para voltar a ser a miúda que um dia voltou à escola, depois da hepatite, e foi recebida em apoteose. Foi preciso ficar mais de um mês fora das aulas, para me notarem a falta. Durante esse mês, não senti saudades do jogo do elástico que testava a minha falta de flexibilidade ou desse terrível exercício a que chamavam o jogo da mosca e onde nos encavalitávamos uns em cima dos outros como se houvesse uma hierarquia definida. Nunca fui do recreio imposto. Preferia perceber a que cheirava a madeira (encerada) ou ver com detalhe os tectos pintados.
A Vila Corina revelou-me cedo a pessoa em que me tornaria, mas as pistas, por mais que nos sejam deixadas precocemente, só mais tarde encaixam em nós. Agora tudo me faz sentido, sim. Vejo-me em retrospectiva a partir de um lugar que já não existe. Nunca mais ousei lá entrar, ainda que muitas vezes ronde os portões largos e enferrujados. Não queria de maneira nenhuma que o presente traísse o meu passado. Preciso que algumas coisas fiquem intactas. Precisamos todos de ter estantes fixas onde a memória não definhe. Onde seja certo que ali estará a minha infância. Os dias da semanada. O elástico mesmo que frouxo.
A nostalgia, esse soro intravenoso que nos invade porque queremos. Aguardo, agora, para saber que cor poderá cobrir a minha antiga escola. A cobertura azul-bebé destapa a minha infância.
O coração ainda bate.