O melhor Nutri-Score continua a ser o bom senso
As medidas políticas relativas à alimentação quase que podem ser vistas com a mesma emergência com que hoje falamos das alterações climáticas.
Ouviu recentemente muitas notícias relativas ao Nutri-Score e continua confundido? Não se preocupe não é o único.
Escrever sobre este tema sem ser demasiado técnico é difícil. Já aprofundá-lo em demasia torna-se chato e perde logo à partida as pessoas que são fundamentais cativar neste processo que são os leigos na matéria. Por essa razão, este artigo deixará de fora as questões políticas recentes sobre a adoção/revogação do Nutri-Score em Portugal.
O Nutri-Score é um sistema de rotulagem nutricional simplificada na frente da embalagem desenvolvido em França com uma escala de 5 letras (de A a E) e 5 cores (de verde-escuro a vermelho), que permite fazer uma análise global do perfil nutricional dos produtos alimentares. Esta classificação é feita através de um algoritmo que pontua favoravelmente nutrientes como proteína, fibra (a partir de certo valor) e presença de fruta e/ou legumes no produto e pontua de forma negativa o teor de calorias, açúcar, sal e gordura saturada. Até aqui tudo parece bem, certo? Nem tanto…
O algoritmo inicial do Nutri-Score era demasiado permissivo e classificava com um “A” e “B” cereais de pequeno-almoço e iogurtes açucarados, algumas bolachas, refrigerantes light e afins. Este facto associado ao apoio implícito de alguns gigantes da indústria alimentar a este sistema fez com que soassem os alarmes sobre a credibilidade do mesmo. Podemos dizer que até para a indústria alimentar o anterior algoritmo poderia ter um efeito perverso, porque um consumidor (por mais leigo que seja), olhando para cereais com 22%-25% de açúcar e que numa escala de cores de A a E são classificados com o “A”, não iria desconfiar e minar a credibilidade desta ferramenta? Seria até bem mais útil para esses mesmos operadores divulgarem de forma mais efectiva as melhorias que têm conseguido fazer nos seus produtos nos últimos anos (os mesmos cereais que hoje têm 22% açúcar num passado não muito distante já tiveram 37% e muitos dos refrigerantes no mercado, para além de terem uma versão light, possuem apenas 3%-6% de açúcar, menos de metade do que já tiveram) do que “martelar” o algoritmo para fazer uma operação de “cosmética nutricional”.
Um novo algoritmo menos permissivo e mais exigente (que poderá ainda melhorar) entrou em vigor no início de 2024 e resolveu parcialmente alguns destes problemas. Os produtos atrás mencionados desceram um ou dois níveis na classificação e ficou mais difícil ter o tão almejado “A” verde-escuro de classificação máxima. Este relatório do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (a partir da página 27) e este blogue e artigo dão alguns exemplos da mudança de classificação dos produtos de acordo com o novo algoritmo. O problema ficou resolvido de vez? Não. Por duas razões, estas mudanças não vão ser detectadas já, pois há um período de dois anos para adaptação dos vários operadores económicos, o que faz com que até ao início de 2026 ainda possamos encontrar no hipermercado o mesmo produto com duas classificações diferentes.
A vantagem deste período de transição é que será uma boa oportunidade para a indústria melhorar a composição nutricional dos seus produtos, pois, quando for mesmo obrigatório a nova classificação estar em vigor, ninguém quer ver o seu produto ter um downgrade no Nutri-Score e isso levará a que a sua composição seja muito provavelmente melhorada.
O outro problema é que mesmo com o novo algoritmo ainda é possível aproveitar algumas brechas do mesmo e “sobreclassificar” um produto que não é assim tão positivo para a saúde. Cereais ou bolachas que possuam uma grande quantidade de hidratos de carbono/farinha (mesmo que não tenham muito açúcar), uma grande quantidade de gordura (desde que não seja saturada), não possuam muito sal e até tenham os mínimos de fibra e proteína (que pontuem positivamente para o algoritmo, mas sem grande impacto significativo na alimentação) podem continuar a ter uma boa classificação no Nutri-Score e não serem de todo um alimento a privilegiar na nossa alimentação. Até já existem no mercado cereais com <1% açúcar (com recurso legítimo a edulcorantes) e 12% quer de fibra, quer de proteína (com sabor bastante bom, diga-se de passagem) e o caminho deverá ser muito mais esse do que procurar as minibrechas do Nutri-Score.
Outro exemplo são os iogurtes, pois, caso sejam magros e isentos de gordura, podem ir até próximo dos 15% de açúcar (3 vezes mais do que o existente no leite que lhe dá origem) e mesmo assim manter uma classificação de “B” (quem gostar de brincar com o Excel tem aqui uma boa forma de se entreter).
Numa perspectiva muito pessoal, o principal problema do Nutri-Score é ter uma visão ainda algo romântica sobre a alimentação e estar mais voltado para a composição nutricional dos alimentos no abstracto e algo desprendida do seu teor calórico sobretudo na classificação relativa às categorias dos óleos alimentares e frutos oleaginosos. Como o novo algoritmo o azeite passou a ser “B”, os frutos oleaginosos (noz, amêndoa, avelã, etc.) sem adição de sal e de açúcar também estão no “A” ou “B”, e mesmo bebidas que tenham zero açúcar ficam classificadas como um C (não há refrigerantes mais bem classificados do que o azeite). Percebe-se a ideia e não há como não simpatizar com a mesma, mas neste momento Portugal e grande parte dos países ocidentais não têm uma pandemia de défice de vitamina E, magnésio, zinco, selénio e outras coisas boas que nos trazem o azeite e os frutos oleaginosos. Possuem antes uma pandemia de obesidade em que o controlo calórico é tudo.
Num país onde dois terços da população tem excesso de peso e é o pior dos 27 membros da União Europeia nos níveis de atividade física, não sobram assim tantas pessoas com “plafond calórico” para estar muito à vontade nas quantidades diárias de azeite e frutos oleaginosos (até porque é o mesmo país onde se convive muito à mesa e onde também se bebe muito álcool, com todas as calorias associadas).
Este não é um artigo sobre o azeite, uma guerra que não vale a pena comprar, sobretudo em Portugal, mas, do ponto de vista clínico, não existem muitas estratégias tão eficazes para a gestão do peso do que começar a trazer os almoços de casa e não ficar refém de pratos do dia de restaurante excessivamente gordurosos (mesmo que seja com azeite), e contabilizar o azeite que se gasta em casa ao final do mês.
Hoje temos 23,4% de pessoas acima de 65 anos. Em 1970 eram 9,7% e a projeção para 2080 serão 36,8%. Se neste momento a pressão sobre os serviços de saúde já é insustentável, com uma população muito envelhecida e com todos os problemas de saúde associados ao excesso de peso e obesidade, a tendência será sempre para piorar. Como tal, as medidas políticas relativas à alimentação quase que podem ser vistas com a mesma emergência com que hoje falamos das alterações climáticas.
Conclusão: o Nutri-Score é ao dia de hoje perfeitamente confiável? Nim. A partir de 2026 será mais, mesmo sabendo que ainda há algum trabalho a fazer na melhoria constante deste algoritmo de classificação. Virar a embalagem de um alimento ao contrário e analisar o teor de calorias, gordura e açúcar pode dar algum trabalho, mas não é uma tarefa muito difícil do ponto de vista cognitivo e pelo menos dá-lhe a segurança de não se sentir “enganado” pelo Nutri-Score.
Não é preciso ter um dístico vermelho ou laranja para sabermos que refrigerantes com açúcar, snacks fritos e salgados, enchidos e carnes processadas são alimentos a não entrar em casa (para não cair na tentação do seu consumo diário) e a serem ingeridos em momentos pontuais, independentemente do peso de cada pessoa. Por isso é que o melhor Nutri-Score será sempre o bom senso.