Um mundo novo

Falamos dos idosos com distanciamento, com complacência, compaixão, misericórdia. Uma vida toda de dádiva, para chegarmos a um ponto em que falarão de nós como uma massa indistinta e abandonada.

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"Esquecemo-nos facilmente da sabedoria dos mais velhos" Nuno Ferreira Santos/Arquivo
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Vivem sozinhos, são mais de meio milhão. Chamam-lhes idosos como, se um dia, não fôssemos nós um deles. Falamos dos idosos com distanciamento, com complacência, compaixão, misericórdia. Uma vida toda de dádiva, para chegarmos a um ponto em que falarão de nós como uma massa indistinta e abandonada. Agora, na posse de todas as minhas faculdades, pergunto-me se quero mesmo chegar a velha. Estar nas mãos dos outros. Essas mãos que pegam em mim e me mudam de cama em cama e me adormecem até quando eu não quero.

Há, até agora, dois momentos traumáticos na minha vida. Tenho sorte, eu sei. Podiam ser muitos mais. Talvez eu tenha aliviado a carga de outros momentos para seguir em frente. Um desses momentos foi, sem dúvida, a morte da minha mãe. Seria natural que ela morresse antes de mim, menos natural foi a falta de vida com qualidade que a encaminhou para a morte. O que retenho agora, e vou reter enquanto me lembrar de mim e de nós, foi a forma como vi os idosos serem tratados numa unidade de cuidados onde deviam ser acarinhados e merecerem o respeito que uma vida que chegou até ali nos merece.

Chegar a velho merece que qualquer pessoa mais nova se curve diante de quem viveu tanto, mas, em vez disso, temos muita gente impreparada que olha para os velhos, os tais idosos, como corpos mortos, esquecendo-se de que ainda sentem, observam, assimilam. Distinguem muito bem quem os trata com humanidade ou empatia. A palavra empatia anda de boca em boca, mas muito pouco de mão em mão.

São já vários os exemplos, pelo mundo fora, de residências, condomínios, comunidades onde vivem, não por acaso, novos e velhos. Essa mistura geracional dá verdadeiro sentido ao espírito de entreajuda e traz aos novos mais sabedoria e aos mais velhos um mundo novo. Na verdade, o mundo novo acontece para ambos. Não há idade para abraçar esse mundo novo. Sou casada com um homem de quase 73 anos que decidiu abraçar um outro mundo quando percebeu que podia.

Um dia, era a minha filha pequenina quando me perguntou por que razão os mais velhos se vestiam de cores tão tristes. A resposta é longa e complexa, porque justifica a falha da humanidade ao longo de séculos: aos mais velhos retiramos a hipótese de viverem na sua plenitude: com cor, com desejo e paixão, com descoberta e espanto, com alegria. Mas por que razão não pode uma mulher mais velha usar um vestido vermelho ou um homem dançar até de madrugada? Estamos constantemente a punir os mais velhos. Uma mulher depois dos 60 que apareça a falar do seu prazer sexual é ridicularizada. Um homem mais velho que se apaixone não está no seu perfeito juízo. É tão errado. Somos tão injustos. Esquecemo-nos de que, todos, um dia vamos querer isto ou algo próximo disto.

Estas comunidades intergeracionais são a única forma digna de continuarmos a viver em sociedade, pensando que, cada vez mais, seremos esses, os idosos. Só que, para que isto possa acontecer, também teremos de educar os mais novos a não olhar para os velhos como algo pouco desejável, descartável. Um corpo que já não tem vida, nem sentidos, nem um vestido vermelho ou vontade de descobrir o mundo.

Faltam-me hoje as respostas da minha mãe às perguntas que revelam a minha inexperiência (não há uma idade em que essas perguntas terminem). “Como cozinho o polvo?”, “Achas que o que sinto é grave?”, “Quantas vezes posso tomar o comprimido?". Tenho a certeza de que posso ouvir isto de outras vozes, dispostas a falar, dar, ouvir e ensinar. Esquecemo-nos facilmente da sabedoria dos mais velhos. Também é por isso que esta sociedade está enferma. Não ouve quem sabe: gente que permanece em silêncio depois de ter sido descartada. Facilmente trocamos um velho sábio por um smartphone.

As pontes intergeracionais têm de começar a ser feitas agora. No meu bairro há muita gente de idade a viver sozinha. Fora do meu bairro há muita gente nova sem casa. Que tal darmos um verdadeiro sentido às palavras humanidade e empatia e experimentar um mundo novo?

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