Pelo sim pelo não

Começa-se a envelhecer quando se começa a dar conta. É o princípio. A gordura torna-se mais teimosa, junto às ancas. Repara-se no que antes não se reparava.

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"A firmeza que começamos a perder na pele, ganhamos em convicções" The Lazy Artist Gallery/pexels
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Cuidado, estás a envelhecer. Olha só para toda esta gente a envelhecer. Olha como envelhecemos todos nós. Uns vão lá à frente, dão-nos conselhos, recomendam-nos cremes. Envelhecer, vi sinónimos, é murchar, definhar, mirrar, caducar. Envelhecer não é crescer, não é subir. Os bebés não estão a envelhecer. Mas nós estamos. Envelhecer é quando se pára de crescer e se começa o percurso contrário. Quando percebemos que o corpo está num movimento de declínio, e o declínio é sempre um caminho rumo ao chão. Quando passamos a olhar muito mais para baixo e as coisas começam a acontecer mais em baixo. Excepto nas conversas, começa-se a olhar mais nos olhos.

Quando nos damos conta de que há um corpo, que até então nos acompanhava, mas passamos a ser nós a acompanhá-lo.

Na cara, onde se começam a desenhar as rugas, junto aos olhos e à boca, parece que alguém sublinhou a lápis as partes mais importantes, como nos livros. Para não nos esquecermos. E também, como nos livros, passamos a dar muito mais importância ao sublinhado do que ao resto.

As dores buzinam em territórios muito específicos e até então desconhecidos.

Começa-se a envelhecer quando se começa a dar conta. É o princípio. A gordura torna-se mais teimosa, junto às ancas. Repara-se no que antes não se reparava. E é verdade o que dizem: começa-se a gostar mais de manhãs. As pálpebras, alguma coisa sobre as pálpebras. Talvez começarmos a reparar que temos pálpebras. Talvez percebermos que as pálpebras vão ficando cada vez mais parecidas com as amêndoas sem pele.

Ultrapassámos em idade os nossos ídolos, aqueles que não envelheceram. Aqueles que imortalizaram a sua juventude. Cantamos as suas canções muito alto no trânsito. E, sim, pensamos bastante nas coisas que ainda queremos fazer. Ainda há coisas por fazer.

Pensamos também sobre qual será o melhor lugar para viver. As hormonas deixam de ser apenas uma palavra e ganham espaço nos nossos corpos.

A capacidade pulmonar não é a mesma, a firmeza que começamos a perder na pele, ganhamos em convicções.

Já não temos avós. Mas este início de envelhecer ainda não assusta tanto, sobretudo porque se pode mergulhar. Alguém dizia que, se estivermos dentro de água, não envelhecemos. Ou será que era que dentro de água o nosso peso vai embora? Acredito que as duas.

Acordamos de madrugada, mas ainda somos os que acreditam que vão conseguir voltar a dormir. Rezamos pelo espanto como se reza pela fruta num campo árido.

Somos capazes de demorar mais tempo à frente de montras que no passado seriam praticamente invisíveis, e de irmos ler as placas por baixo das estátuas.

Já nos esquecemos das coisas que um dia dissemos que eram inesquecíveis.

É mais provável que a sombra comece a ser uma bênção. Os gestos tornam-se mais previsíveis. Até o inesperado se torna mais previsível. Já não trazemos areia para casa.

Já sentimos que somos ligeiramente anacrónicos. Não vamos à frente nos assuntos, nas tecnologias, nas montanhas. Já se vai um pouco mais atrás, um pouco mais devagar.

É tudo ainda incerto e este começo já assusta. Seguimos: um bocadinho mais brutos, e um bocadinho mais sensíveis.

Pelo sim, pelo não, deixemo-nos ficar dentro de água mais um pouco.

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