Como é que se põe os mais novos a comer peixe?
O consumo nacional de peixe é elevado, porém as crianças rejeitam tudo o que não esteja desfiado ou sem espinhas. Cozinhar maior variedade de peixe e envolvê-los no processo pode dar bons resultados.
Muito muda quando uma criança começa a falar e parece que o apetite por peixe é uma das mudanças. “Gostam de peixe até começarem a falar. Os miúdos de um ano e tal adoram peixe cozido, depois começam logo a dizer que não gostam de peixe, parece que é a frase que mais dizem”, comenta Luísa Villar, autora de livros de cozinha portuguesa, entre eles Não Se Brinca com a Comida (ed. Casa das Letras, 2023), com receitas e outras formas de tornar as refeições mais atraentes para as crianças. A ideia de que o poder da palavra é transformador parece poética, mas pode levar ao desespero de pais, ao facilitismo em casa e nos refeitórios escolares e a gerações com menor consumo de peixe, afastadas da dieta mediterrânica. Há solução para a relação complicada das crianças com o peixe, mas dá trabalho.
Até certa altura, o peixe passa bem disfarçado, mas a convivência com outros miúdos e as personalidades a borbulhar, falar-se em peixe pode fazer soltar um simples “não” em algumas crianças. Esta observação de Luísa Villar é endossada pela criação de dois filhos e, mais recentemente, uns quantos netos, além da mais recente experiência das aulas Teen-agers na Cozinha, um conjunto de seis aulas para uma turma dos nove aos 13 anos. Cada aula é dedicada a uma receita — nenhuma de peixe, os alunos opuseram-se.
Vamos continuar a ter dieta mediterrânica?
Nos refeitórios escolares, os pratos de peixe têm o maior desperdício, afirma Ada Rocha, investigadora da Faculdade de Ciências da Nutrição da Universidade do Porto (FCNAUP) e coordenadora do SPARE — Sistema de Planeamento e Avaliação de Refeições Escolares, software que ajuda as escolas a criar ementas com critérios de nutrição e sustentabilidade (nos municípios que não têm concessões de alimentação colectiva a empresas). Os resultados das escolas que usam este programa gratuito mostram que, quando são mais pequenos e só têm uma alternativa (a maioria das escolas do pré-escolar e 1.º ciclo), as crianças comem mais facilmente o peixe. Ajuda a isto o facto de tipicamente haver mais funcionários por aluno nestes ciclos, e o acompanhamento vai convencendo a mais umas garfadas. “No secundário, chegam à cantina, vêem peixe na ementa e nem entram”, conta Ada Rocha.
Há alguns números que plasmam estas vivências. O relatório COSI Portugal 2022 — Childhood Obesity Surveillance Initiative (traduzindo, iniciativa de monitorização da obesidade infantil), promovido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e organizado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, mostra que 56% das crianças comem peixe, no máximo, três vezes por semana; apenas 16,5% uma vez por dia. Esta realidade para as crianças entre os seis e os oito anos é contrastante com o consumo geral de peixe no país, que continua a aumentar e se situa nas 62,7 gramas por habitante por dia, segundo a Balança Alimentar Portuguesa 2016-2020, publicada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
“É verdade que somos um dos países que mais comem peixe, o problema é que comemos ainda mais carne”, diz Ada Rocha. O mesmo relatório mostra que os portugueses consomem peixe e carne em excesso e poucos hortícolas e frutícolas, relativamente a uma roda dos alimentos que sintetiza a dieta mediterrânica. Carne, peixe e ovos representam 16,9% da alimentação dos portugueses, mas deveriam representar 5%.
O documento apresenta ainda o índice de adesão à dieta mediterrânica. Em Portugal, este valor está em queda desde o início dos anos de 1990. A curva descendente vê-se à mesa de um refeitório, nos miúdos que não sabem o que é cavala, apesar de ser um dos peixes mais pescados no país, ou que rejeitam uma feijoada de pota – “E estava mesmo muito boa!”, comenta Rute Espanhol, nutricionista do município de Benavente, que elabora as ementas das 18 escolas do concelho. Almoça frequentemente nas escolas e nota quando os alunos têm hábitos de consumo de peixe em casa, pela forma descontraída como almoçam. “As crianças estão cada vez mais afastadas do consumo do nosso peixe em caldeiradas, em massadas, e mais afastadas deste padrão mediterrânico e isso é um dos principais entraves”, afirma.
Podemos comer sushi?
Este concelho é um exemplo de co-criação das ementas escolares com os alunos e colhe frutos: no ano lectivo de 2022/23 diminuiu em 21% o desperdício alimentar. Em sessões com os alunos (e em que os pais podiam participar) perguntou-se o que gostavam de comer na escola e, ultrapassados os ubíquos hambúrgueres e pizzas, criaram-se os best-sellers bolonhesa de atum e lasanha de salmão. Conservas sem adição de sal, como o atum, a cavala e a sardinha também são uma opção pacífica e saudável. Surgiu outro curioso pedido: sushi. “Acho que é uma questão de moda, talvez sejam os restaurantes a que vão. Explicámos que, por uma questão de escala e segurança alimentar, não era possível fazer sushi nas nossas cozinhas”, conta.
Os hábitos alimentares em casa contam muito. Ada Rocha sente uma grande pressão para que as escolas resolvam as necessidades alimentares das crianças, mas exemplifica como isso não é possível sem as famílias. “Quando se aplicou o regime de fruta escolar pensou-se que se ia aumentar o consumo de fruta nas crianças, mas não. Os pais escudavam-se na ideia de já terem comido fruta na escola e não a davam em casa.”
Envolver os pais na alimentação escolar e, assim, passar ideias de nutrição saudável é também um objectivo de Rute Espanhol. Os refeitórios das escolas de Benavente são abertos aos pais, que podem assim almoçar com os filhos, provar o que lhes é oferecido. No entanto, a adesão é baixa. “Há a questão da disponibilidade, por causa dos horários de trabalho, por outro lado há esta ideia cimentada de que a comida não é de qualidade e nem dão uma hipótese.”
As crianças, pelo contrário, vão dando. Além da co-criação de ementas, numa das escolas envolveram-se os alunos na remodelação da cantina e a frequência dos alunos triplicou: pediram e ganharam uma fonte de água filtrada, uma esplanada e música ambiente.
O ritual da refeição também conta
“Esta questão não é só alimentar”, sublinha Joana Barrios, actriz e autora de Nhom Nhom (ed. Arte Plural, 2017), livro de receitas “para crianças que todos vão querer comer”. “Há um lado comportamental, ritualístico, em estar à mesa, a conversar, ou em ajudar a preparar o jantar que é bom fomentar. Se as crianças manifestam vontade de participar, dentro do que é possível nas suas várias fases de crescimento, eu não as vou parar. Isto é bom e ajuda a construir um sentido crítico em relação ao que se come.”
A noção de que a participação na confecção aproxima as crianças da comida é partilhada pelas nutricionistas e os workshops de cozinha são usados por algumas escolas como forma de passar educação alimentar, dar independência e quebrar ciclos de maus hábitos alimentares. Começar por levar as crianças ao mercado, escolher peixes com elas, pode ajudar a valorizar o produto aos seus olhos.
A actriz tem uma presença digital e televisiva ligada à comida e tudo começou com o lançamento do dito livro: com o nascimento da filha mais velha, hoje com nove anos, percebeu que as suas receitas para introdução de alguns alimentos às crianças eram surpreendentes até para a pediatra dos filhos. “Às vezes as comidas das crianças não são apetitosas. Nada contra uma pescada cozida, mas pode ser um bocadinho mais divertido. Muitas vezes perguntam-me se os miúdos comem mesmo aquilo e comem, comemos todos a mesma refeição.”
“Aquilo” são caldeiradas de peixe, tomatadas, açordas, massadas e arrozes de peixe: a solução de Joana Barrios para oferecer peixe às crianças passa por olhar para a cozinha portuguesa — particularmente a do Alentejo, de onde é natural. A partir de um caldo feito com os diversos peixes dá-se sabor a todo o prato e, mesmo quando os pequenos não podem comer sal, perfumam-se os pratos com ervas aromáticas, como hortelã. Os escondidinhos também resultam, concordam Joana Barrios e Luísa Villar — com empadões e soufflés à cabeça, tirando sempre as espinhas e as peles. “Isso é que os mata”, brinca Luísa.
“Tenho consciência de que isto dá trabalho e de que parte do meu empenho nisto advém do meu gosto pela comida”, concede Joana Barrios, para logo a seguir lembrar: “Mas é uma área que influencia tudo na nossa vida.” Em momentos de desenvolvimento físico e intelectual, a presença do peixe é fulcral, diz a investigadora Ada Rocha: “Chegou-se à conclusão de que proteger os bebés do peixe até ao primeiro ano de vida criava mais alergias — quanto mais cedo se introduzir o peixe, melhor. Além disto, a riqueza de ómegas é muito importante em termos intelectuais, é uma fonte de proteína e tem menos gordura do que a carne. Há a ideia de que o peixe não puxa carroça, mas é mentira. Simplesmente tem menos tecido para digerir e menos gordura, a digestão é mais fácil, o que é bom.”
Em idades mais avançadas, a saúde também é afectada por uma alimentação desequilibrada. O COSI Portugal 2022 aponta para 31,9% das crianças entre os seis e os oito anos com excesso de peso; destes, 13,5% sofrem de obesidade infantil. Rute Espanhol alerta para o crescente diagnóstico de doenças associadas à idade avançada em jovens adultos, como diabetes tipo 2.
O maior desafio é o peixe mais sustentável
Mais do que os pequenos, que vão sendo levados à mesa com histórias e brincadeiras, como recomenda Luísa Villar no seu livro, os pré-adolescentes e adolescentes são um desafio. “Quando começámos a trabalhar com os mais velhos [3.º ciclo, secundário] pensei que teríamos a oportunidade de introduzir variedade, peixes com espinhas — postas de peixe, solhas — não conseguimos. Os alunos não estão habituados a tirar espinhas, não sabem como fazê-lo. Só podemos servir medalhões, lombos: é limitante.”
Hoje, comer peixe de forma sustentável passa por comer uma maior diversidade de peixes e apostar naqueles de menor valor comercial (já que sofrem menos pressão pela pesca). No entanto, nas escolas é difícil contemplar estes peixes nas ementas, já que o mercado não os oferece em lombos ou tranches — a única forma de serem aceites pela jovem crítica. “Era preciso uma maior ligação entre os ministérios da Educação, da Agricultura e das Pescas para que os peixes das nossas costas chegassem às nossas escolas”, reitera Rute Espanhol. Em casa, espinhar uma posta de cação pode ser mais desafiante do que cozinhá-la e assim os pequenos comensais descobrem tarde ou nunca os peixes da costa portuguesa.
Para Luísa Villar “é melhor nem ir por aí”, “a sardinha, a cavala são sabores muito fortes, a não ser que sejam muito bem escondidos”. Volta-se à estratégia dos cozinhados misteriosos e de os envolver no preparo das refeições. “Os pais [das crianças que fazem as suas aulas de cozinha] dizem-me que há uma mudança de atitude, têm mais curiosidade para experimentar outras coisas. Há dias, um deles dizia que não gostava de ervilhas, cozinhámo-las e disse-lhe que não precisava de provar, mas ele comeu! Acho que comem porque foram eles que fizeram”, afirma.
Apesar de a evidência científica mostrar que os hábitos alimentares adquiridos na infância se reflectem na vida adulta, nota Rute Espanhol, há sempre a esperança que o gosto, a personalidade ou simplesmente a idade mude alguma coisa na relação de uma criança com o peixe. “Eu compreendo-os, não gosto muito daqueles peixes pequenos, com muitas espinhas e muitas peles”, confessa Luísa Villar: “Mas é importante ir provando de tudo.”