Lynne Walker, 74 anos: “Com a idade, é mais fácil viajar sozinha”
Pouco tempo antes de falarmos, Lynne Walker tinha estado em Istambul, nove dias. “Mas perdi o primeiro e o último”, conta a partir de Seattle, onde vive. Não se permitiu tempo para ultrapassar o jet-lag. “Da próxima vez, já sei. E haverá uma próxima vez em Istambul.” Lynne tem 74 anos e há sete decidiu revisitar todos os locais onde viveu enquanto crescia para escrever um livro de memórias — em Istambul viveu entre 1960-61.
Lynne sabe que teve uma infância e adolescência invulgares. Foi uma espécie de nómada. Com poucos meses de vida, já havia trocado os Estados Unidos pelo Reino Unido e até 1968 passou por Inglaterra (várias vezes), País de Gales, Escócia, Alemanha, Bélgica, Turquia e Iraque, à boleia do trabalho do pai, numa empresa petrolífera. Foi numa viagem ao Reino Unido, em 2017, quando fazia pesquisa para um curso que ia dar na universidade, que decidiu ir ver uma das casas onde tinham vivido e aí nasceu a vontade de vê-las todas e de escrever sobre esses anos. Sempre fora renitente em fazê-lo (“não gosto de falar sobre mim”), mas entretanto lera, entre outros, G. W. Sebald e pensara “isto é uma maneira muito interessante de abordar a memória”.
Desde que se reformou (2019) tem viajado, sobretudo, com esse propósito. “A minha única esperança é viver o suficiente para escrever tudo.” Para recuperar memórias e investigar, além de Istambul já regressou a Frankfurt e a Antuérpia. Em Outubro irá à Escócia e Inglaterra. Sabe que não poderá ir a Bagdad, porque “esta não é boa altura para alguém com passaporte norte-americano”. “Poderia ir em tours, mas eu viajo sempre sozinha, gosto muito.”
É assim desde 2003, quando, sendo já proprietária do seu apartamento, sentiu que poderia permitir-se “viajar uma vez por ano”. Até então, e desde que regressara aos EUA (1977), as viagens foram poucas — excepções: a Rússia, três vezes, “por motivos profissionais” (o seu amor pela literatura russa levou-a novamente à universidade e ficou a uma tese do doutoramento); e Inglaterra, onde visitava a melhor amiga. Desde esse ano, viaja regularmente. “No início, era para Inglaterra ou Alemanha”, com a literatura como fio condutor. Foi esta que a levou, por exemplo, a Dublin, e a trouxe a Portugal — Comboio nocturno para Lisboa (Pascal Mercier) despertou-lhe curiosidade, mas foi o Porto a cidade escolhida. “Não me dou bem com o calor”, confessa.
Dá-se bem é com o Google Maps no seu telemóvel, “resolve tudo”, sobretudo porque quando viaja Lynne só planeia “o voo e o hotel”. De resto, sabe que há coisas que quer fazer mas prefere ir “with the flow”. “Esse é um dos motivos por que viajo sozinha. Não quero ser organizada, não quero alguém a dizer-me o que fazer.”
Com a idade, diz, tornou-se mais fácil viajar sozinha. “A minha mãe sempre disse que uma mulher quando chega a uma determinada idade se torna invisível. E é verdade.” Por isso se sente mais segura e admite estar “muito mais livre” a viajar (e a expressar opiniões). “Porque sou velha, I can get away with it.”
Teresa Montenegro, 65 anos: “Continuo a querer viajar”, mas “as viagens de aventura acabaram”
Não faltaram viagens na vida profissional de Teresa Montenegro. Enquanto trabalhou na área de exportação de uma empresa, viajou por quase todo o mundo, “menos a Ásia”. “Foi assim durante 19 anos, mas depois também me cansei”, confessa. Regressou à Cinfães natal, de onde tinha saído em 1975 para estudar no Porto, que seria a sua casa nas décadas seguintes, e de onde “arrancou” para as primeiras viagens, “dois Interrail, em 1979 e 1980”. “Vontade de viajar tinha, de pequenina”, recorda, “sempre tive um globo no quarto. O meu desejo era La Paz, não sei porquê.”
A verdade é que, além das viagens em trabalho, Teresa, 65 anos, passou anos a viajar pouco fora de Portugal. Recorda o Egipto, em 1989, com uma amiga, “uma viagem mais ou menos programada”, Cabo Verde, quando o “Morabeza era o único hotel da ilha do Sal”, e, pelo meio, Namíbia numa viagem promovida pela revista Grande Reportagem. Já depois do 11 de Setembro, regressou a Nova Iorque, com uma prima e uma amiga. “Fizemos um programa bom, montámos tudo no avião”, ri-se — a cidade estava “diferente, mais simpática”.
Ainda tinha o restaurante em Cinfães quando teve, diz, “noção de que a idade vinha e ia deixar de ter condições” para as “grandes viagens” que queria fazer. À América Latina, a sua paixão, que até já conhecia em trabalho, mas que queria explorar no seu lado mais natural e em contacto com os locais, e à Cidade do Cabo, com a obrigatória passagem pelo cabo da Boa Esperança. Entre tudo isto, propuseram-lhe uma viagem ao Japão. “Não tinha expectativas”, confessa, “o mais a oriente onde tinha estado era a Turquia”. Entretanto, já lá esteve cinco vezes — “e não sei se volto…”.
“Continuo a querer viajar, mas de forma diferente”, assume, “as [viagens] de aventura acabaram”. Agora Teresa anda a revisitar cidades europeias pelas quais viajou muito em trabalho (“com a gentrificação estão completamente alteradas”) e a fazer viagens “mais culturais”, incluindo em grupo — Viagens de autor, da Pinto Lopes Viagens: visitas guiadas a museus com historiador, explica. “Não são grandes grupos e não estás presa, só tens de aparecer para os museus.” Foi assim que regressou a Londres, onde não ia desde o início dos anos de 1990 — “era a minha cidade de eleição, sentia-me em casa” — e em breve irá a Paris, no rasto “dos impressionistas”. Já voltou também a Estocolmo, de carro foi à Andaluzia e agora aponta a Bilbao, para ir ao Guggenheim.
“Nesta fase da vida, é o que estou a fazer, até porque considero que não se deve ir a todos os lados.” E explica: “Quando estive em Ushuaia, havia barco para a Antárctida. Tinha dinheiro, mas não quis. Acho que há espaços limitados a humanos, que devem ficar completamente virgens.”
Amélia e António Picão, 65 e 71 anos: Agora “temos descontos nas visitas”
O autocaravanismo é um bichinho e Amélia e António Picão foram por ele mordidos há muitos anos. “Mas trabalhávamos, não íamos investir numa autocaravana porque não tínhamos tempo para desfrutá-la”, contam. Acabaram, no entanto, por comprar uma mais cedo do que planeavam. Iam visitar “o filho do meio” em Andorra e, como ele vivia num quarto, tinham de ficar num hotel, que “era muito caro”. Nessa altura viram uma autocaravana C15 usada à venda — “É um caracol”, ironizam, “mas comprámos”. Ele teria 50 anos, ela 44 — agora, ele tem 71 e ela 65, já vão na quinta autocaravana e já cruzaram a Europa múltiplas vezes.
A próxima grande viagem com ela será a Marrocos, esperam; antes, irão a Espanha. E, entretanto, no seu blogue, “continuam” na viagem do ano passado, a mais longa até à data (18 mil quilómetros em três meses e meio), de Portugal até ao Cabo Norte, regresso com um mês em Itália. Foi o filho mais novo que os incentivou a escrever um blogue (As minhas viagens de sonho em autocaravana). “Vocês viajam tanto”, dizia-lhes, “que não se devia perder”. Ele abriu a conta, Amélia aprendeu-lhe os truques e tomou-lhe as rédeas. Mas não publica nada em viagem — “ninguém tem de saber por onde andamos”.
Não foi sempre assim. António reformou-se do seu trabalho numa seguradora aos 55 anos, mas começou a ajudar Amélia no seu negócio, uma engomadoria. Foi só quando ela se reformou, aos 60 anos (ele tinha 66), que, de repente, podiam desfrutar da autocaravana (quase) sem data de regresso. E se já viajavam antes desta — com os filhos, percorreram vários parques temáticos na Europa, integraram excursões e até um cruzeiro — a liberdade que a autocaravana lhes ensinou, ninguém lhes tira. É verdade que vai tudo rigorosamente planeado, mas não se coíbem de parar se algo lhes chama a atenção. É por isso que vão por estradas nacionais.
Gostam de viajar lentamente. Por cada dia na estrada, nunca mais de 300 quilómetros, ficam dois em visitas. E apontam uma vantagem em viajar com esta idade: “Temos descontos em visitas.”
E tanto os motiva a natureza — e, neste aspecto, a Finlândia é o país de que mais gostaram — como a cultura - Praga e Budapeste ganham as preferências do casal; sempre que estão na estrada e há jogos da selecção de sub-21 de futebol (“a A é cara”) ou ciclistas portugueses em acção fazem questão de o incluir nos itinerários; quando passam pela Alemanha, aproveitam para visitar família. “Facilita muito gostarmos das mesmas coisas”, nota Amélia. Os filhos (três: um a viver em Portugal, outro na Irlanda do Norte e outro no Panamá), conta, lidam muito bem com as suas viagens, já se habituaram à maneira de ser dos pais — “sabem que somos desenrascados”. E o neto, de 14 anos, adora viajar com eles, portanto, Agosto fica reservado para ele e Portugal. As suas viagens podem ser seguidas online.
Hernâni Cardoso, 64 anos: “Quando saio para viajar sei onde começo, não onde acabo”
Em poucos meses, Hernâni Cardoso vendeu quase tudo: entre 1 de Janeiro de 2014, o primeiro dia de reserva (serviu na Força Aérea), e 20 de Maio, desfez-se de “casa, carro e tarecos”. “Fiquei apenas com a bicicleta e o que transportava”, conta — “e a bicicleta nem era minha”, brinca. Tinha 53 anos e uma ambição do tamanho do mundo — “quando me reformar vou dar a volta ao mundo em bicicleta” — que estava prestes a concretizar. De caminho, ia devolver a bicicleta que havia sido roubada (e depois encontrada) em Portugal a Eric Feng, um chinês que havia pedalado desde a China até cá. A bicicleta não chegaria inteira ao destino: um acidente no Norte da Índia destruiu-a e foi despachada por correio. Mas Hernâni, depois de recuperar da clavícula partida, comprou uma nova em Malaca e nela prosseguiu até Kunming, no Sul da China. Foi uma “pequena” etapa dos quatro anos e quatro meses que passou a pedalar — desde então, todos os anos faz pelo menos uma grande viagem na companhia da sua bicicleta.
Não a fez em 2018 — mas mudou-se para Goa. Havia passado por lá em 2015, na volta ao mundo, e fê-lo lembrar Luanda nos anos de 1970, onde viveu com os pais. “Hoje está muito modificado, mas na altura tinha laivos.” Recentemente, mudou-se para uma “zona mais pacata, não tomada por turistas”, no Sul do estado, com “a praia a 300 metros”. É a sua base, mas com visitas recorrentes a Portugal — para visitar a sua mãe, com 90 anos: “Ela diz-me que sou maluco”, ri-se.
“Quando saio para viajar sei onde começo, não onde acabo.” Por isso, em 2021 saiu para a Europa Central e países bálticos e, como fazia frio, migrou para Sul, acabando a deambular pelo Chipre e costa sul da Turquia. Em Junho de 2022 saiu, novamente na Europa — Alemanha, Polónia, Bielorrússia, Sérvia, Hungria e Áustria, onde teve “uma visão”. Seguiu para África — Quénia, Tanzânia, Zâmbia, Botswana, Namíbia, África do Sul até ao cabo da Boa Esperança — e regressou apenas em Fevereiro de 2023. Organiza tudo no caminho, “avião, ferries, vistos, onde dormir” — que é muitas vezes “onde calha”: “Já dormi em casas de banho, selva, quartos com reputação duvidosa, hotéis”.
Em princípio, este ano fará um périplo pelas ilhas do Pacífico, sem bicicleta, e confessa ter ficado com a Austrália atravessada, durante a volta ao mundo. Teve de interromper a viagem no deserto, foi evacuado para Perth, seguiu para Goa — “cheguei a fazer testamento para o meu senhorio saber o que fazer com as minhas coisas” — e acabou no Hospital Militar em Lisboa. Regressou a Perth para retomar a viagem, ainda fez 100 quilómetros no deserto mas foi abaixo psicologicamente, por passar dias e dias sem se cruzar com vivalma. Mas ainda não desistiu, confessa, “de atravessar a Austrália de costa a costa”. As suas viagens podem ser seguidas aqui.
Josefa Feitosa, 64 anos: “Tenho uns 20 anos para viver, não quero desperdiçar”
Estava em casa de uma amiga no Rio de Janeiro, “a sofrer com o calor”, quando o filho da amiga ligou da Estónia. “Disse-lhe que dava tudo para morar numa geladeira”, recorda, “e ele sugeriu que eu fosse para lá, que era friozinho”. Ela olhou para o mapa, viu a Escandinávia ali ao lado. “Pôxa, eu nunca fui.” Oito dias depois estava a comprar o bilhete — chegou no início de Abril e regressa ao Brasil a 10 de Junho; chegou a Tallin, partirá de Milão. Josefa Feitosa, 64 anos, viaja “sem fazer planos”. Conseguiu o que a menina, que em Juazeiro do Norte (Ceará) observava os “trens a chegar, o povo a sair, cheio de bagagem”, queria — “ser passageira”.
Começou a planeá-lo em 2008: cortou na empregada, no cabeleireiro, na manicure, para poupar para a reforma. Que até chegou dois anos antes do previsto, com 56 anos, depois de uma vida passada entre a prisão, onde era assistente social, e a universidade, onde dava aulas, depois de três filhos e um neto criados (“achava que nunca ia ser livre”). Lançou-se a percorrer os 20 países listados como objectivos — quando falámos, estava na Polónia, o seu 62.º país.
Antes, de cada vez que os filhos cumpriam um aniversário, oferecia-lhes uma viagem. “Era uma forma de eu viajar também”, nota. “Mas eram viagens de pacote”, recorda, “eu não tinha noção de fazer o jogo que faço hoje”. Esse aprendeu-o com a prática: veio à Europa pela primeira vez à boleia de um documentário sobre uma prisão para mulheres trans que ajudou a criar e acabou por ficar um ano e dois meses. Porque começou a achar “a coisa de viajar muito fácil”. Descobriu os hostels e um “mundo absurdo de possibilidades”.
Quando regressou ao Brasil, vendeu parte do que tinha, distribuiu o restante pelos filhos: percebeu que não precisa de tanto dinheiro para viajar e que a sua reforma é suficiente (chegou a trabalhar num hostel e como nanny, enquanto aprendia inglês na Irlanda). Os seus pertences passaram a caber numa mochila de 10 quilos e assim se aventurou num novo continente, África. Foram 18 países, “de trem e ônibus”, passagem para Israel e daí para a Ásia.
Entretanto, uma das filhas abriu-lhe uma conta no Facebook e um jovem num hostel abriu-lhe conta no Instagram, onde partilha as suas viagens como “mulher preta, vidóloga, cidadã do mundo”. Na foto de apresentação, o cabelo azul destaca-se — pintou-o no início da pandemia e já perdeu a conta a todos os que se aproximaram dela por causa dele. Em sentido contrário, já foi vítima de racismo e de idadismo. “Se eu fosse a deter-me nesse tipo de preconceito, não estava mais viajando.”
E “depois de tanto suor e lágrimas” na sua vida, é nas viagens a solo que encontra “momentos de paz e de felicidade”. Já viajou “com pessoas ensinando como viajar”, já fez “roteiro, plano de voos” — “eu me limitei”. Não foi aos lugares que queria, não demorou o tempo que queria — “acho que vou ter uns 20 anos pra viver, não quero desperdiçar”. Não se importa que lhe chamem egoísta — aliás, ficou famosa no Brasil por ter dito “avó não foi feita para cuidar de neto” e ainda hoje é “detonada em rede social”. Aliás, vai regressar ao Brasil a tempo da estreia de uma peça de teatro baseada na sua história que se chama, precisamente, Egoísta.
Até lá, já faltou ao casamento do filho. Mas tem a certeza que deu espaço aos filhos para crescerem. Na primeira semana ligavam todos os dias, um mês depois nem se lembravam que ela existia, diz Josefa. Sente, contudo, que eles têm muito orgulho nela. E ela neles. www.instagram.com/joviajando