Qual é a melhor memória que guarda com os seus irmãos? 6 cronistas respondem
Nesta sexta-feira, 31 de Maio, assinala-se o Dia dos Irmãos e seis cronistas da secção Ímpar do PÚBLICO recordam a sua infância.
Uns recordam o abraço protector de uma irmã mais velha, que é capaz de a ajudar a superar todos os medos; outros lembram o nascimento de uma "pequenina" quase "forasteira"; ou há quem recorde os gostos em comum, como a rádio. Invariavelmente, os cronistas da seccção Ímpar acreditam que os irmãos são a melhor herança que os pais podem deixar e desvendam as melhores memórias da sua infância, a propósito do Dia dos Irmãos, assinalado nesta sexta-feira, 31 de Maio.
Ana Lázaro, actriz, encenadora e dramaturga
Experimente-se ter 12 anos, às três horas de uma tarde de férias de verão infinita, dos anos noventa, e ter de entreter / agradar / aturar uma criança de 6 anos, no caso uma “Mana”, e não só uma Mana, como a Mana mais nova, a que veio depois, quando eu própria tinha 6 anos e não estava mesmo nada a contar com a chegada de um ser desconhecido extremamente minúsculo, extremamente fofinho, extremamente barulhento, extremamente necessitado da atenção dos meus pais ─ uma forasteira embrulhada em fraldas e cheiro a perfume, muito mais pequena e muito mais adorável do que eu, e sobre quem me era explicado: “A Mana é pequenina. Tens de ser meiguinha com ela!” E eu rainha da meiguice imposta dava-lhe aqueles abraços: ai-que-eu-gosto-tanto-tanto-mas-tanto-de-ti-que-me-apetece-esborrachar-te. “Ana!!! Não apertes a mana com tanta força!”
Aos 12 anos eu já levava tareia da Mana pequenina ─ que cedo percebeu estar em vantagem de adorabilidade e usava essa vantagem ternurenta para exercer domínio coercivo sobre mim, a quem eu, subjugada, não ripostava, por ter sido proibida de fazer uso do tamanho e da força. Exceção feita para as três da tarde das férias de verão em que a luz do sol incidia num ângulo particular sobre uma moldura de vidro lá de casa, e refletia aquilo que aparentava ser um diamante volante, uma fadinha de luz que circulava pelo quarto conforme eu movimentasse a moldura.
“Alexandra! Olha…”, gritava eu, “Olha quem nos veio visitar!” E a pequena ditadora-de-caracóis farfalhudos e rosto de boneca girava e corria durante horas a fio a tentar “agarrar” a fadinha de luz que nunca se deixava apanhar. Cresci a ficar cada vez mais cúmplice da minha Mana. Mesmo quando estamos longe. Às vezes quando o sol incide sobre uma parede cá em casa lembro-me dessa nossa brincadeira. E quando ela me liga, no ecrã do meu telemóvel não se lê “Alexandra” nem “Mana”. Lê-se: “Raio de Luz”!
Ana Stilwell, cantora e compositora
Como qualquer bom trio, as minhas memórias com os meus irmãos são cheias de alianças. Ora era o alvo dos dois que se juntavam para fazer um "kamé-a-me-á" do Dragon Ball, ora as raparigas se uniam contra o rapaz. Mas havia algumas coisas que nos uniam sempre: deitarmo-nos na cama dos nossos pais a ver as Marés Vivas, uma boa sessão de surf no Guincho em que os três nos sentávamos nas pranchas a olhar para o pôr-de-sol ou, como é natural, uma boa conversa a queixarmo-nos dos nossos pais! Hoje em dia é preciso fazermos muitos quilómetros para estarmos todos juntos, mas quando nos encontramos não há ninguém com quem eu prefira estar!
Inês Meneses, comunicadora e autora
Gosto de me lembrar do meu irmão, até quando eu não existia: há uma fotografia dele que trago sempre para o presente, como se fosse um ensinamento que não convoquei. A fotografia, sem rigor, faz-me adivinhar que ele teria 6 anos. Estava perante uma mesa farta, um lanche cheio de tudo, tão variado que, mais de 50 anos depois, as cores da fotografia não empalideceram. Só ele está ali, hesitante, com as mãozinhas entrelaçadas, tentando escolher o que lhe podia satisfazer a gula. Gosto dessa fotografia porque, meio século depois, me lembra a nossa apatia perante o muito. Talvez tenha sido só uma difícil escolha para ele, mas hoje estamos assim, apáticos perante o excesso.
Da minha memória conjunta, recordo as manhãs de sábado, enquanto ouvíamos rádio e descobríamos mais mundo, tão longe que estávamos de imaginar que um dia, também nós, teríamos microfones e um lugar de escrita pública.
Gosto de me lembrar do dia em que comprou uma máquina de escrever com o primeiro trabalho dele. Foi dali que escreveu para os jornais. Mais importante ainda: a música que com ele descobri e que está guardada, agora, já só numa cassete imaginária.
Sem o meu irmão, eu nunca teria chegado à rádio, à imprensa, à escrita avulsa. Somos hoje mais cúmplices do que alguma vez fomos. A idade só nos fortaleceu.
Isabel Stilwell, escritora e jornalista
Desde que me lembro de mim todas as noites, antes de adormecer, rezo “God Bless”, e depois o nome de cada um dos meus sete irmãos, acabando com o pedido de que me faça uma menina boazinha. Acho que eles fazem o mesmo. E, todas as noites, agradeço aos meus pais terem-me deixado tantos irmãos em herança (aliás a única), porque aos 64 anos continuo profundamente convencida de que nada nos dá mais sentido de pertença do que um clã que viveu a mesma infância, o mesmo sentido de humor, os mesmos livros, as mesmas bulhas, e as mesmas histórias. E sim, sobrevivemos às partilhas.
João da Silva, autor e orador motivacional
Certo dia, quando eu tinha seis anos, acompanhei Rosária, a minha única irmã, cinco anos mais velha do que eu, a casa de uma amiga dela. Ficámos por lá até ao fim da tarde. Quando caiu a noite, e de propósito ou não, a avó da amiga da minha irmã contou-nos uma história sobre o diabo. Não me lembro do enredo, mas recordo o terror que senti enquanto ouvia a voz gutural da narradora e observava os seus enormes olhos brumosos abertos sem pestanejar. Regressei a casa aterrado, a apertar a mão da minha irmã. Quando me deitei para dormir, chorei de medo. A dada altura, a minha irmã deitou-se comigo. “Não chores, ninguém te vai fazer mal, eu não deixo, vou estar sempre aqui para ti”, disse-me, enquanto me abraçava com um aperto tão forte que diabo algum poderia alguma vez desfazer.
Liliana Carona, jornalista, docente e investigadora
A minha irmã mais velha, que sempre desempenhou o papel de uma segunda mãe, cedo começou a trabalhar enquanto modelo, e os primeiros ordenados gastava-os em cereais: Chocapic, Golden Grahams ou Estrelitas (na altura não havia marcas brancas a baixo custo e por isso não era entrada constante em casa). Quando ela chegava, a um dia da semana à tarde, só nós — eu, duas irmãs e um irmão —, reuníamo-nos junto à mesa da cozinha e enchíamos as taças de leite a ferver, até as pétalas de chocolate ficarem moles. Qual ritual, eu sorvia primeiro o leite todo e no final a iguaria molenga jazia no fundo da taça que fazia o meu deleite. Já tentei repetir a empreitada nos dias de hoje. Não tem o mesmo sabor.
Nessas tardes, a minha irmã do meio fazia crepes e o meu irmão fazia os melhores ovos mexidos. Se alguém nos observasse poderia pensar que não víamos comida há muito tempo. Da caixa de cereais, e como éramos quatro, pouco restava para repetir a dose. Não me lembro do que falávamos ou se só comíamos. Recordo-me, sim, que nos ríamos até doer a barriga e que gostávamos muito uns dos outros. Tanto como hoje. A vida faz sentido por isto!
As cronistas Ana Lázaro e Liliana Carona escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990.