As mãos dos poetas
Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.
Cícero dizia que nem que o tempo da sua vida
duplicasse arranjaria tempo para ler os poetas líricos.
Séneca, Cartas a Lucílio, 49.5
as mãos dos generais não se confundem
com as mãos dos poetas
porque os generais por norma
voltam a casa com as mãos sujas de sangue
e as dos poetas estão apenas sujas de tinta
em roma durante a república
as mãos dos senadores pareciam ser as melhores
porque para mentes muitos confusas
pode parecer que era nessas mãos
de impecáveis unhas polidas
adornadas de anéis consulares
que as mãos dos generais e dos poetas
encontravam o seu meio termo
e às vezes até era
mas isto provou ser
frequentemente uma falácia
pois amiúde estavam sujas de sangue
a menos que as mãos em causa
fossem as do velho catão
que no entanto
as preferia calejadas, no arado
e sujas de sangue apenas por decoro patriótico
mãos corruptas e sujas de sangue
ao mesmo tempo
eram normalmente
as dos governadores de província
como sugerem leituras
de catulo, díon cássio e astérix e obélix
mas as mãos mais sujas de sangue
eram as dos grandes generais
as de césar por exemplo
depois do genocídio na província da gália
um dos feitos que para a posteridade
lhe valeu o rótulo de grande general
tudo isto às vezes
confundia-se muito e a grande velocidade
por exemplo
o destino das mãos e da cabeça de cícero
um dos últimos senadores republicanos
impecavelmente limpas, cabeça e mãos,
porque ambivalentemente sujas
de versos retóricos, meias paixões
e manobras de conspiradores
ambas terminaram cortadas e expostas na rostra
do fórum romano
por frases ditas e palavras escritas
contra generais com mãos pelo menos
tão sujas como as dele
mas seria uma desculpa fácil dizer
que as palavras por que vivemos
não nos podem erguer acima
da sordidez do tempo
breve de uma vida humana
isto porque as mãos dos césares
que se seguiram não se confundem
por exemplo com as mãos de cesare
pavese o poeta cujas mãos repousavam
sobre o cachimbo perpetuamente aceso
nas manhãs de turim e assinavam poemas
e também as cartas que em 1935
o puseram na prisão por serem
de um teor antifascista
e terem sido trocadas entre ele
e subversivos famosos
uns quantos rapazes de vinte
e poucos anos como ele
mas as mãos dos censores da república romana
não são as mesmas mãos dos censores dos fascistas
sujas de uma tinta que não se deve confundir
com aquela em que os poetas sujam as mãos
quando assinam os seus versos subversivos
importará marcar a diferença
o meu mais subversivo verso deve
agitar-se ainda nalguma linha na memória do teu corpo
que a minha mão que assina o papel carregou
consigo profundamente para uma verdade ansiosa
em olhos que sorriem aqui e agora acesos de incêndio
ao traçarem um mapa de poucas palavras
as que são a chave secreta de um regresso
às cidades acesas e à abdicação
a um tempo de estar vivo sem medo de perder
Tatiana Faia é poeta e uma das responsáveis pelo projecto editorial Enfermaria 6. O seu mais recente livro de poemas, Adriano, foi publicado em 2022 pela não edições.