Entradas de leão, saídas de…

Vejo nos arroubos discursivos do momento uma mistura explosiva de falta de conhecimento, desinformação e bastante deselegância. A realidade não é aquela que a ministra da Cultura julga existir.

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No Museu Grão Vasco, em Viseu, a ministra da Cultura prometeu “uma revisão profunda” da Museus e Monumentos de Portugal Adriano Miranda
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Lidos na Sertã, nas profundezas do pinhal interior, a “Repensar Portugal” sob a égide tutelar do Padre Manuel Antunes, com as suas prevenções contra o Homo methalicus (um “homem da ruptura, da ruptura do equilíbrio entre ele e o seu meio, entre ele e o outro, entre ele e ele"), os relatos daquilo que a novel ministra da Cultura teve para dizer sobre museus e património cultural aparecem como retórica tribunícia, uma espécie de “vendaval chegou”, um teatro de corte de fala grossa em situação de vida frágil.

Afirma a ministra que considera “desastrosa" a reforma executada pelo governo anterior na área dos museus e do património cultural. Poderíamos até concordar com o dito desastre, se se referisse ao sector do património cultural. Mas aqui, para além de se dizer que também as chefias do Instituto do Património Cultural IP serão substituídas (o que se compreende inteiramente dado o acumular de muitos anos de enormidades das mais descabeladas, com destaque mediático para a última delas, a da pintura de Domingos Sequeira), não há nada de substancial. Fez-se alguma avaliação do estado de execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e serão tomadas medidas que garantam a sua concretização, especialmente na conjuntura de turbulência acentuada a que a ministra deu despreocupadamente origem? Não sabemos. Haverá revisão de competências, nomeadamente na interface com as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR)? Parece que não. Continuará a ter sede no Porto? Nada foi dito.

Questões irrisórias, por certo, porque todo o foco foi posto na Museus e Monumentos de Portugal (MMP.EPE) e nos seus administradores, identificados como verdadeiros diabinhos da Cultura. Razões? Bom, quer-se uma maior autonomia dos museus nacionais, algo em que estaremos todos de acordo, pelo menos ao nível enganoso das palavras. Mas não poderia a actual equipa da MMP ser chamada a executá-la? Não poderia, por exemplo, exigir-se que promovesse a regulamentação interna que a garantisse formalmente? Seria mesmo necessário substituir quem está lá há menos de cinco meses e só em Outubro obrigaria a indemnizações? Não se entende. A menos que se antecipe já que nessa data, com a discussão do Orçamento do Estado à porta, não se sabe em que estado estará o Governo ou que, entretanto, ele acorde para toda esta ventania destemperada, a qual já então pode não passar daquilo que dizia a canção antiga, “vendaval passou” (esperando-se que alguma coisa reste).

É aliás fácil prever este desenvolvimento porque o cardápio dos ventos é tal que deixa estarrecido qualquer observador: até a Lei de Bases do Património Cultural Português e a Lei-quadro dos Museus Portugueses, leis de direito reforçado que constituem reserva de competência da Assembleia da República (tendo as actuais sido aprovadas por unanimidade), se afirma querer rever. Pergunta-se com que maiorias parlamentares.

Dado todo este “sem-sentido”, haverá quem mais prosaicamente relacione a fúria anunciada com uma espécie de vingança da recém-investida tutora em relação a quem do antecedente a tutelava. Não sabemos. Haverá quem a atribua antes a imagem de marca, como já se viu e continua a ver noutros ministérios, a modos de governo onde a curta expectativa de vida obriga a rapidez inusitada na instalação de novas clientelas, com a esperança vã de ficarem para depois. E haverá, enfim, quem se limite a considerar uma demarcação em relação às insuficiências (nomeadamente no plano dos saberes específicos sobre museus), aos vícios (de que é exemplo o processo nada transparente de selecção de especialistas para os serviços centrais e também o pouco cuidado posto na preservação da imagem institucional autónoma de cada museu) e aos erros administrativos (caso do processamento de pagamentos aos trabalhadores) cometidos pela administração da MMP.

E quanto ao modelo societário encontrado: tem a ministra aversão a entidades públicas empresariais, coisa especialmente estranha num governo da AD? Quer regressar à fórmula “instituto público” (quiçá direcção-geral) ou quer somente escaqueirar serviços e correr com uns para satisfazer os apetites de outros, não passando as referências à autonomia dos directores dos museus (e bem assim à maior circulação de peças e ao simpático “app voucher 52”, que veremos como será aplicado…) de cenouras e equívocos lançados aos incautos?

Pelo meu lado, reconhecendo erros e perigos, nomeadamente o da “engorda” excessiva do organismo central, com prejuízo das instituições que verdadeiramente os justificam, os museus, palácios e monumentos neste caso, um clássico da sociologia da administração pública, continuo a fazer avaliação positiva da reforma dos últimos meses e até das pessoas que a protagonizaram na MMP. Se não houver outros que o façam, fica pelo menos aqui o meu elogio. Tão frontal e sincero como foram e são as críticas que lhes fiz, olhos nos olhos as mais das vezes.

Vejo nos arroubos discursivos do momento uma mistura explosiva de falta de conhecimento da realidade, desinformação e bastante deselegância. A realidade não é aquela que a ministra da Cultura julga existir, em certos casos com enorme pena minha. A maior parte dos museus, e praticamente todos os palácios e monumentos, do Ministério da Cultura não têm já capacidade técnica própria residente capaz para assumirem completamente todos os procedimentos inerentes à autonomia administrativa. Nem a expressão mágica “centros de custos" (em que a MMP vinha já trabalhando) resolverá o problema do pé para a mão. Longe vai o tempo em que cada museu tinha o seu “orçamento privativo” (com o seu número de contribuinte) e o seu próprio quadro de pessoal (e não será a demagogia da redistribuição de pessoal recentemente contratado para a MMP que irá resolver este problema, porque até a direcção técnica exclusiva lhes falta às vezes, dado que um mesmo director exerce o mandato em mais do que um museu).

Sem dúvida, deve regressar-se a esse estádio de autonomia administrativa e reforçar-se a autonomia estratégica, dispostas ambas na lei-quadro dos museus. Mas fazê-lo de supetão seria, isso sim, desastroso. Seria talvez recuar até 2007, quando a dita “autonomia” significava para a actual ministra apenas a autonomia do museu que dirigia, o Museu Nacional de Arte Antiga, tendo tratado acintosamente os seus colegas dos outros museus nacionais. Sobre o assunto escrevi na altura um texto contundente (“Museus nacionais e o caso Dalila Rodrigues, os pontos nos is”, PÚBLICO, 25 de Agosto de 2007) de que não me arrependo.

Admito que a ministra destes meses, dificilmente destes anos, tenha, entretanto, evoluído. Talvez veja agora o mundo pela lente acumulada do MNAA e do Mosteiro dos Jerónimos [que dirigiu desde Maio de 2019]. Talvez partilhe até o projecto para fazer do conjunto museológico e monumental de Belém uma nova "ilha de abundância" (como no Monte da Lua, em Sintra), num país "de tanga" em todo o seu restante parque patrimonial. Se for assim, voltaremos a discordar. Mas não julgo que haja tempo ou ambiente para tal, porque tudo isto não passará provavelmente de um exemplo mais do velho aforismo das entradas de leão, para saídas de… sendeiro, ouso prever.

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