Chamava-se Baleizão, Catarina Eufémia
Baleizão é uma espécie de Cova da Iria. E Catarina Eufémia o mito “mariano” dos sem-terra do Alentejo. Faz hoje 70 anos que a ceifeira foi assassinada com três tiros à queima-roupa.
Sobre as personagens
Todas as falas são reais e foram subtraídas a entrevistas por nós realizadas, em diferentes momentos e circunstâncias, desde a década de 1990 do século passado, e a documentos oficiais (autópsia, processo judicial, Museu da GNR). “Carmona” era o nome de trato comum em Baleizão de António Joaquim do Carmo, marido de Catarina Eufémia.
Para além das dezenas de conversas que mantivemos, também recolhemos “falas” numa espécie de autobiografia/memorabilia que se mantém inédita. Maria Catarina, António Gaspar e José Adolfo, por ordem decrescente de idades, são os filhos, todos sobrevivos, da camponesa alentejana. Antónia Leandro, Maria Cascalheira e Custódia Passinhas eram amigas, vizinhas e companheiras de trabalho de Catarina Eufémia. Manuel de Melo Garrido foi o único jornalista que esteve em Baleizão no próprio dia do assassinato, enquanto redactor principal do jornal Diário do Alentejo e correspondente de O Século. As suas memórias e apontamentos apenas foram tornados públicos em 1984, num raro opúsculo com o título A Morte de Catarina Eufémia – A Grande Dúvida de Um Grande Drama.
Também nos socorremos do discurso que Álvaro Cunhal proferiu em Baleizão, a 19 de Maio de 1974, aquando da trasladação do corpo da ceifeira do Cemitério de Quintos para Baleizão.
Acto Primeiro — Mulher
Da canção: Ceifeiras viram-na em vida.
Antónia Leandro – Era a moça mais bonita da sua geração... cantava que nem um rouxinol.
Maria Catarina – As pessoas mais antigas às vezes dizem assim: “Olha, tu és mesmo parecida com a tua mãe.”
(Coro) Autópsia – [Tinha] estatura mediana (1,65 m), de compleição regular, de sistema muscular pouco desenvolvido, de cabelos pretos, pele branca e íris castanha.
José Adolfo – Não sei o que é ter amor de mãe.
Jornalista – Catarina era uma jovem formosa e de corpo bem traçado.
José Adolfo – Levava-me ao colo, naquele dia...
Jornalista – [Com cerca de] 12 anos começou a namorar um rapaz, um pouco menos novo do que ela, com quem viria a casar na igreja de Baleizão, em 2 de Outubro de 1946, portanto com 18 anos.
Carmona – Quando eu regressar e casarmos, então vais aprender alguma coisa que desconheces.
Jornalista – Não chegou a aprender a ler nem a escrever.
Custódia Passinhas – Eram tempos de uma pobreza tão grande, havia tanta fome, que os nossos pais nem nos punham à escola.
Carmona – Estou-te a escrever da ilha da Madeira. Passamos aqui cinco horas e aproveito o tempo para te dar as minhas notícias (...) não esmoreças, o tempo passa e não pára e há-de chegar a hora de unirmos os nossos corações.
Antónia Leandro – Tinha lindos cabelos, atados atrás com um pequeno cordel branco.
Carmona – Amo-te com toda a força da minha alma. Nunca prantaria outra no teu lugar.
Custódia Passinhas – Nem dez anos tínhamos e já andávamos com as mulheres mais velhas a mondar as searas.
Carmona – Estás fechada no meu peito e ninguém mo pode abrir. Só tu e mais ninguém.
António Gaspar – Era o amor da vida do meu pai...
Carmona – Havia outros rapazes de olho nela, mas eu é que fui o escolhido. Foi amor à primeira vista.
José Adolfo – Não tenho... não tenho memória, pois então?
Carmona – A minha mulher foi assassinada com um filho ao colo, com oito meses (...) Catarina, minha esposa, mãe dos meus filhos, encanto da minha alma, tinha apenas 26 anos de idade.
Jornalista – O oficial da GNR atingiu-a de acto imediato com uma violenta bofetada. Catarina, que levava ao colo o filho mais novo, caiu, arrastando na queda a criança, que sofreu alguns ferimentos.
José Adolfo – Falava-se nisso, que eu tinha ficado para sempre com uma marca na cara, mas não, não tenho marca nenhuma. Nem no corpo, nem nada. Mas podia ter apanhado com alguma bala, não calhou... quer dizer: foi por pouco, não é?
Carmona – Se não houver nada contra, chegará a hora de nos encontrarmos como dantes e trocarmos as nossas impressões, acariciarmo-nos um ao outro.
(Coro) Autópsia – O cadáver encontrava-se vestido com as seguintes peças: um vestido de chita azul, uma combinação creme, uma saia branca, por baixo da combinação, um colete branco, uma camisola de homem, meias de linha de cor roxa e sapatos de trabalho de cabedal branco.
Antónia Leandro – Queremos paz, trabalho e pão para os nossos filhos, disse-lhe Catarina. “Querem paz? Então mas aqui alguém está em guerra?”
Carmona – Sou infeliz!
Antónia Leandro – A coitadinha morreu logo ali...
Jornalista – A Catarina Eufémia foi dado o apelido da aldeia onde nasceu, que era já o do seu pai e do seu avô materno. O seu nome oficial era, portanto, Catarina Eufémia Baleizão.
Maria Catarina – A minha mãe era uma pessoa assim muito liberal, muito comunicativa, as pessoas gostavam dela. Era muito amiga do seu amigo, gostava de conviver, não era pessoa que não fosse prestável.
Carmona – Trabalhava de sol a sol, a mendigar uma migalha de pão aos ricos agrários.
(Coro) Processo – A morte da infeliz Catarina foi somente devida a uma circunstância meramente acidental.
Maria Catarina — Ficámos sem lar muito pequeninos... o meu pai, os meus irmãos... tudo dispersado... cada um para seu lado. E é isso.
(Coro) Autópsia – Os peritos são de opinião que todas as lesões traumáticas foram produzidas por três projécteis (balas). O agressor deveria estar atrás e à esquerda em relação à vítima.
(Coro) Museu da GNR – Pistola-metralhadora Sten, MK2, parte integrante das guarnições da viatura blindada Humber Mark IV. Arma de modelo similar à que vitimou Catarina Eufémia, a 19 de Maio de 1954, pelas mãos do tenente da GNR...
Antónia Leandro – Estava escondido por detrás de um releiro [amontoado] de favas, o miserável. E saiu logo com a arma direito à gente a chamar-nos burras e a perguntar, em tom de ameaça, o que queríamos.
Carmona – Um beijo, nada mais posso dizer. Se soubesses ler, ia alguma coisa mais.
*
Sobre o contexto
O assassinato de Catarina Eufémia na manhã de 19 de Maio de 1954, na aldeia de Baleizão, Beja, ocorreu num momento histórico e social particularmente complexo. E, claro, marcadamente asfixiante para as populações campesinas do Alentejo. As lutas rurais no Sul de Portugal, mais ou menos reivindicativas, mais ou menos mobilizadoras, acabaram por ser uma constante durante o Estado Novo. Muito em concreto nos territórios onde o latifúndio se impunha em exclusividade. Era o caso de Baleizão. Onde a sazonalidade laboral e os parcos rendimentos não enchiam as barrigas, alimentavam a fome. O propagandeado “Celeiro da Nação” era, por igual, uma vasta plantação de penúria. De outras paragens, em especial das serranias algarvias e beiroas, chegavam pobres ainda mais pobres em busca de um pedaço de pão, ainda mais duro. Em contraciclo com a mecanização agrícola, a mão-de-obra disponível dilatava-se. Exponencialmente. No terreno, o Partido Comunista Português plantava a ideia de um “Homem Novo”. A politização — a tomada de consciência social entre os rurais — ganhava vigor. Assim como a repressão ganhava robustez. No pós-Segunda Guerra Mundial, Baleizão adquiriu a alcunha de “aldeia vermelha”. Catarina Eufémia passou a ser a sua bandeira. Clandestina.
Acto Segundo – Mito
Da canção: Baleizão a viu morrer.
Álvaro Cunhal – Catarina morreu como deve saber morrer um membro do partido.
Maria Catarina – A minha mãe não era militante, mas às vezes ia distribuir folhetos do PCP...
António Gaspar – Não posso dizer que a minha mãe era comunista ou que era isto ou que era aquilo... era trabalhadora. Queria trabalhar para dar de comer aos filhos.
Álvaro Cunhal – É com profunda emoção que aqui, nestas terras onde viveu Catarina Eufémia, vemos unidas as massas trabalhadoras alentejanas na homenagem àquela que se tornou exemplo e símbolo da trabalhadora de vanguarda e da mulher comunista.
Maria Catarina – O meu avô Adolfo, pai do meu pai, esteve dois anos preso em Peniche. E o meu pai também já tinha aquelas ideias embrulhadas nele. Mas a minha mãe era nova e a família dela não tinha essas ideias...
Álvaro Cunhal – Catarina tornou-se uma lendária heroína popular, orgulho do glorioso proletariado rural alentejano, orgulho de todos os trabalhadores portugueses, orgulho do partido.
Maria Catarina – A família da minha mãe não tinha política. O meu pai é que já tinha essas ideias. Era diferente... O meu pai certamente que lhe mostrava as ideias que ele tinha e ela não o contrariaria...
Álvaro Cunhal – O sacrifício de Catarina não foi em vão.
José Adolfo – O meu pai gostava do Partido Comunista. Só não gostava, às vezes, de certas atitudes que eles tomavam. Ele gostava mais da luta.
António Gaspar – Era um homem que queria falar.
Álvaro Cunhal – Catarina lutou pela liberdade e a liberdade foi alcançada.
António Gaspar – Um homem que fala é um homem que sabe, não é?
Jornalista – O Diário do Alentejo, cuja reportagem foi confiada a José Moedas, estimava entre 40 mil e 50 mil, o número de componentes dessa multidão.
Carmona – Depois, quem se apoderou dos restos mortais de Catarina foi o Partido Comunista Português.
Álvaro Cunhal – Da terra portuguesa começam a brotar flores das plantas que Catarina regou com sangue.
Carmona – Quando eu me pus independente do PCP, tinha razão para tal (...). Logo após o 25 de Abril inventaram que eu tinha recebido uma indemnização pela morte da minha Catarina.
Jornalista – Os restos mortais de Catarina Eufémia conservaram-se no Cemitério de Quintos durante 20 anos, até serem transladados para o de Baleizão, em 19 de Maio de 1974.
José Adolfo – Aquilo foi uma loucura. Nunca vi tanta gente junta.
Álvaro Cunhal – Enquanto viva, Catarina serviu com a sua actividade a classe trabalhadora. Morta, continuou a servi-la pelo seu exemplo, inspirando sucessivas gerações no espírito da combatividade e da abnegação.
José Adolfo – Lá em Quintos, fomos nós que cavámos a terra e recolhemos os ossinhos da minha mãe... tirámos aquilo tudo... e o meu pai tem uma cena...
Carmona – Saltei para dentro da sepultura e apanhei todos os ossos que formavam o seu físico de mulher elegante.
José Adolfo – Se na altura já houvesse telemóveis, aquilo tinha ficado...
Carmona – Dei um beijo na caveira já descarnada e fiquei consolado. Tomei ainda mais ânimo e coragem para resistir a este drama tão comovente.
José Adolfo – Tirei três dentes e mandei fazer [um pendente] em ouro, bordado, para pôr num fio. Tenho ali... dei um ao meu irmão e outro à minha irmã.
Maria Catarina – Como filha, nunca me meti em políticas acerca da minha mãe. A política que eu tenho com a minha mãe foi que nós, muito pequeninos, ficámos sem lar.
Álvaro Cunhal – Esta grande manifestação é prova da unidade e da força invencível dos trabalhadores alentejanos.
José Adolfo – Transportámo-la entre Quintos e Baleizão num carrinho pequenino que um primo nosso tinha.
António Gaspar – Era um Mini, preto.
José Adolfo – O caixão era pequenino, levámo-lo ao nosso colo.
António Gaspar – A multidão era muita.
José Adolfo – Parecia quando terminavam os jogos do Benfica...
Maria Catarina – Nós morávamos em Quintos e o meu pai era cantoneiro. Mas, de vez em quando, quando havia algum trabalho, a minha mãe vinha aproveitar aqui com as mulheres de Baleizão, porque os meus avós moravam aqui [em Baleizão] e ela ficava com os meus avós. Foi numa altura dessas, em que ela estava cá, que as coisas aconteceram.
António Gaspar – Só há uma fotografia da minha mãe... mais nenhuma.
*
Sobre a memória
Não é fácil, talvez até seja impossível, biografar hoje Catarina Eufémia. Uma camponesa anónima, simplesmente mulher, como milhares de tantas outras. A sua história pública resume-se a um dia. Ao seu último dia. E apenas aos instantes finais da sua curta existência. Há livros e teses e poesia e peças de teatro e reportagens que a retratam. Mas a Catarina que neles vem é apenas memória, essa fera indomável que acrescenta e retira substância aos factos. Conforme lhe apetece. Ou lhe interesse. No entanto, é com base na memória que se constrói e edifica a lenda. O mito. A narrativa. Catarina Eufémia, desconhecida e vulgar ceifeira de Baleizão, é a representação quase religiosa de todas as vulgares e desconhecidas mulheres (e homens) deste mundo. Por isso mesmo a sua memória perdurou, escondida, clandestina, durante duas décadas. Tendo reflorescido na primavera de 1974. Quase como uma aparição mariana.
*
Acto Terceiro – Estátua
Da Canção: O teu pranto não findou.
Carmona – Sempre que abro a porta da rua ou uma janela, lá está a estátua dela... para mim, é-me impossível esquecê-la.
Custódia Passinhas – Todos os movimentos eram controlados pela Guarda. Então depois da morte de Catarina quase não se podia sair à rua.
Maria Cascalheira – Naquele tempo imperava a fome e a repressão.
Carmona – A minha vida foi sempre de sobressaltos. Às vezes pensava: “Que mal fiz eu para ser tão castigado?...”
(Coro) Escrito nas paredes de Baleizão – Mataram-na por cinco tostões.
Antónia Leandro – A GNR andava por aí a cavalo para meter respeito.
(Coro) Notícia do Diário do Alentejo – O funeral realizou-se ontem, saindo do Hospital de Beja para o Cemitério de Quintos. Centenas de pessoas acompanharam o préstito, verificando-se impressionantes cenas de dor e de desespero.
Jornalista – Chegaram a ouvir-se tiros que, no entanto, não atingiram ninguém. Entretanto, o caixão foi conduzido à pressa e sob escolta da Polícia, não para o Cemitério de Baleizão, onde outra grande multidão o aguardava, mas para o Cemitério de Quintos, povoação próxima daquela e onde Catarina Eufémia então residia.
Carmona – Não deixavam que ninguém se chegasse lá, ao pé da campa.
(Coro) Autópsia – Todos os outros órgãos da cavidade abdominal encontravam-se anatomicamente íntegros. Útero não grávido.
Antónia Leandro – Foi num faval que ele a matou. Ali não havia trigo... só queríamos protestar contra as pessoas que vinham do Penedo Gordo para fazer o trabalho que nós não fizemos, por estarmos em greve porque queríamos que os patrões aumentassem a jorna de 12 para 20 escudos.
Maria Cascalheira – Tiveram de fugir com o corpo pelas traseiras do hospital.
Carmona – Estava uma lua dourada! Parecia de dia, mas talvez já fossem duas e tal da manhã. Cheguei ao pé da minha Catarina, que amei em vida e idolatro na sepultura, disse-lhe algumas palavras que, certamente, se ela as ouvisse, ficava comovida. Senti-me tranquilo, ali ninguém me podia fazer mal... como se via bem, fui entre as sepulturas para não pisar nenhuma... veio-me tanta coisa à ideia que eu nem sei explicar... Talvez todo o universo, os continentes, os oceanos... as tiranias, a violência, as lutas fratricidas... tudo projectado pelo homem.
Chamava-se Baleizão, Catarina Eufémia (ed. Número — Arte e Cultura/Stolen Books), ensaio fotográfico de Pedro Loureiro e textos de Paulo Barriga