De buggy e barco pelos meandros do Zêzere
Descemos de Pedrógão Pequeno em ziguezague pelo vale do Cabril até ao Zêzere para, de barco, descobrir pontes, garças-reais e uma foz que desagua ao contrário. O regresso faz-se de emoções telúricas.
O mercado semanal, ao domingo, já foi feito aqui, em tendas em redor do pelourinho, aponta Luís Dias na primeira paragem do passeio, bem no coração de Pedrógão Pequeno, no concelho da Sertã. A vila de granito, rebocada de branco, faz parte da rede das Aldeias do Xisto e já foi sede de concelho, com carta de foral de 1174. É daqui que parte o passeio de buggy da Trilhos do Zêzere, cruzando as ruazinhas do centro histórico até desembocarmos na antiga estrada romana que desce em ziguezague até à ponte filipina, um dos ex-líbris da região.
Zona serrana, predominavam os “caminhos de cabras”, daí que o termo 'cabril' se tenha fixado na toponímia, de uma rua da vila à barragem ou ao vale que agora descemos, “a zona do Zêzere mais estreita e escarpada, sem contar com o vale glaciar em Manteigas”, onde nasce o rio. “Aqui por baixo temos um monumento nacional”, construído entre 1607 e 1610, durante a Dinastia Filipina, “a única travessia que havia abaixo da Covilhã até 1954”, conta o guia e proprietário da empresa, com várias actividades turísticas de aventura e natureza.
O vão do arco central da ponte tem 26 metros de altura, o que faz com que seja “das poucas pontes desta época que não está totalmente submersa”, ainda que se encontre mergulhada no leito de uma das três albufeiras do Zêzere: o Cabril, com a parede de barragem “mais alta do país”, que já vislumbramos daqui e da qual teremos uma panorâmica completa quando estivermos de barco no rio; Bouçã, esta, que é a “mais pequenina”; e Castelo de Bode, a jusante. “Depois, em 1995, foi construída a ponte mais alta do país e da Europa, com 150 metros de altura”, actualmente a segunda no pódio nacional, um colosso que, a poucos metros da travessia filipina, ainda a torna mais singela e graciosa.
Da estrada original restam apenas algumas partes dos muros, uma vez que a calçada “foi sendo reposta porque era o único acesso que havia”, construída durante o período romano, assim como a primeira ponte, com passadiço de madeira e pilares de pedra, cujas ruínas ainda se vislumbram quando o caudal baixa. Regressamos aos buggies para continuar pelo Trilho da Levada, “escavado de forma manual pelos trabalhadores e pelas populações”, em 1918, para “criar um canal de água” que desceria desde uma pequena barragem até ao Moinho das Freiras para “produzir energia com a queda de água”. A represa nunca chegou a ser construída, mas o canal por onde a água deveria correr é hoje um percurso pedestre a meia encosta ao longo do Zêzere.
Do barco aos solavancos
Deste cais no Zêzere, enfaixado entre escarpas de floresta – para cá a Beira Interior, para lá a Litoral, para montante o granito, para jusante o xisto – não partem actividades motorizadas da empresa. “Gostamos muito deste spot e queremos protegê-lo”, garante Luís. Apenas stand up paddle, caiaques e “team buldings aquáticos”. Mas o contra-relógio desta visita pelo Pinhal Interior Sul obriga a que desta vez o passeio seja num dos dois barcos motorizados que a Trilhos do Zêzere tem habitualmente na barragem do Cabril.
Ressalva feita, já estamos a passar por baixo da ponte filipina – note-se como cada pedra tem uma letra para que, depois de cortadas na margem, funcionasse como “fórmula para construírem o puzzle” sobre o rio. Entre curiosidades e factos históricos, vamos deslizando até perto da parede da barragem do Cabril. Ao lado, um grupo em caiaques aproveita uns rochedos na margem para uma pausa e piquenique.
Os dois casais de garça-real residentes surgem em voos à nossa frente, enquanto espreitamos a foz da ribeira de Pêra, virada para a nascente do Zêzere, o que “é contranatura”. “Isto acontece porque a construção da barragem veio alterar a foz”, que antes contornava o penhasco e surgia lá mais à frente. À direita, o Penedo do Granada, onde Luís Vaz de Camões terá escrito o poema O Pomar Venturoso. Há que imaginar um rio ainda por domar, com uma queda de água lateral “com cerca de 40 metros” nesta zona, as encostas cultivadas em socalcos. Era “uma paisagem lindíssima” e bela continua a ser, ainda que de águas mais mansas e encostas bravias.
De outra ribeira na margem esquerda, onde a cascata do carvalhal forma piscinas naturais quando o caudal está mais baixo, deverá nascer este mês “o primeiro canyoning da Região Centro”, daqui até à aldeia de Pedrógão Pequeno, anuncia Luís. É até lá que regressamos agora, de novo nos buggies. Mas, se para cá viemos em passeio turístico, experimentamos agora parte do percurso com mais “componente de aventura”, por caminhos de terra, charcos, solavancos e muita risada até ao miradouro do monte de Nossa Senhora da Confiança, com prodigiosa vista sobre a vila e aldeias em redor.