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Russos e ucranianos convivem numa remota, gelada e "quase comunista" vila do Árctico
Arctic Dreams, de Mario Heller, traz o retrato da vida em Barentsburg, no Círculo Polar Árctico, a vila onde vivem isolados, com temperaturas extremas, cerca de 400 habitantes russos e ucranianos.
No Inverno, Barentsburg não vê a luz do Sol; e no Verão, ele nunca se põe, transformando uma estação do ano num interminável dia. Plantada numa das ilhas do arquipélago norueguês de Svalbard, no Círculo Polar Árctico, a pequena vila, construída pela Rússia na ilha de Spitsbergen para servir os trabalhadores da mineração de carvão, é hoje a casa de cerca de 400 habitantes. A população tem uma característica que a torna, na situação de isolamento geográfico extremo em que se encontra e no contexto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, num lugar muito particular: metade é de nacionalidade russa e a outra é ucraniana.
Quando o suíço Mario Heller, fotógrafo da Panos Pictures, decidiu visitar a ilha do Ártico, em Fevereiro de 2023, a guerra já se estendia há um ano. Contactou a empresa que explora o carvão na ilha de Spitsbergen, a Arktiugol, e conseguiu o apoio logístico que tornou possível a sua viagem, mas impondo uma condição: “Eles eram contra uma cobertura política” da situação na pequena vila, contou ao P3, a partir de Berlim, onde reside. “E eu, honestamente, também não tinha interesse em cobrir a história dessa perspectiva. Já há muitas reportagens sobre Barentsburg a partir desse ângulo.”
O projecto Arctic Dreams, que resulta de duas semanas de estadia de Heller na vila do Árctico, não deixa de ser sobre a sua população. “As 400 pessoas que vivem ali pouco têm que ver com a guerra”, observa. “Os jovens russos trabalham maioritariamente na indústria do turismo e foram para Barentsburg em busca de aventura. Alguns deles também procuravam evitar o recrutamento na Rússia. As pessoas da Ucrânia provêm, sobretudo, da zona leste do país. Para eles, Barentsburg é uma fuga à guerra que, naquela zona, começou verdadeiramente em 2014.”
As tensões entre russos e ucranianos, na ilha, subiram de tom no início da guerra, em 2022. “Algumas pessoas que eram críticas da invasão russa, umas 30 ou 40, acabaram por ter de abandonar. Acho que foram silenciadas, que a agência governamental [russa que gere a ilha] tentou travá-las.” Em 2023, aquando da sua visita, a situação continuava tensa. “Uma das protagonistas do projecto, Barbara, que trabalhava no museu, diz que cada conversa era, então, como andar num terreno minado. Acho que isso ilustra bem quão difícil deveria ser.”
Ainda assim, todos se conhecem em Barentsburg. “A comunidade é muito pequena. Não é completamente unida, existem pequenos clãs. Num local tão frio, é muito importante a convivência e o calor humano.” E foi esse calor que experienciou durante a sua estadia. “Fiz muitos amigos. A partir do segundo ou terceiro dia, fui convidado consecutivamente para visitar as suas casas, para ir ao cinema ou o que fosse. É muito fácil formar laços porque as pessoas são muito abertas.”
Na pequena vila, cuja principal actividade económica é o turismo – e que, desde a pandemia e o estalar da guerra na Ucrânia vive um período de défice – vive-se uma espécie de “comunismo”, conta Heller. “Todos os apartamentos são praticamente iguais. Todos estão mobilados da mesma forma e não é possível comprar mais coisas. E funciona bem porque as pessoas não se importam muito com isso, com coisas, em geral. Existe apenas um supermercado, fornecido por uma cadeia russa em intervalos de meses, e toda a gente tem acesso à mesma comida, bebida, etc.” Existem diferenças salariais, sublinha, mas que não se reflectem no consumo “porque não há onde consumir de forma diferente”. E tudo o que consomem é directamente debitado do seu salário, por via electrónica. “Achei interessante ver o conceito na prática.”
Na cidade, existem todo o tipo de equipamentos, conta. “É uma cidade que dispõe de um grande centro cultural, de um teatro e um cinema, de um museu, de um hotel, de um hospital moderno e enorme, de um centro desportivo”, enumera. “É um lugar luxuoso, em comparação com outras cidades de mineração russas do Árctico, onde vivem apenas homens e onde o cenário pode ser bem depressivo.” Em Barentsburg vivem inúmeras famílias com crianças que frequentam a escola, uma característica que o fotógrafo considera “bastante singular”.
Arctic Dreams é, para o fotógrafo, um projecto sobre os sonhos que conduziram todos os habitantes até àquele lugar remoto do Árctico. E sobre o facto de a sua estadia lhe parecer, à distância, um sonho pessoal. “O lugar tocou o meu coração. Senti que existe, para todos os que lá vivem, a vontade de cumprir um sonho.”