Sessenta anos do Golpe e a Campanha da Legalidade: lições para o Brasil

Três anos antes do golpe que impôs uma ditadura de mais de duas décadas ao Brasil, a Campanha da Legalidade, liderada por Brizola, derrotou os militares que queriam impedir a posse de João Goulart.

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No momento em que, num julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu por unanimidade que as Forças Armadas não são “poder moderador” no Brasil, lembro-me da Campanha da Legalidade – movimento ocorrido no estado do Rio Grande do Sul, liderado por meu avô Leonel Brizola, então governador, que se insurgiu contra os militares que tentavam impedir a posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. "Campanha da Legalidade" porque exigia o cumprimento da Constituição Federal por parte dos militares golpistas, que tentavam impedir a posse de João Goulart (Jango), que estava em viagem oficial à China.

Nesse episódio histórico e dramático da política nacional, o governador Brizola assumiu a defesa da sucessão e mobilizou a população. Foi a primeira vez que um líder civil brasileiro, com os necessários apoios, conseguiu impedir um golpe de Estado. A arma de Leonel Brizola era um microfone e estava no porão do palácio Piratini, sede do governo, onde ele improvisou um estúdio e colocou a Rádio Guaíba sob seu controle. Ali ele montou uma estação radiofônica com a qual comandou 104 emissoras, que foram entrando na “Cadeia da Legalidade”, formando uma poderosa rede de comunicação que reverberava seus discursos inflamados 24h conclamando os brasileiros a reagirem. Milhares de pessoas se postaram diante do palácio e dos aparelhos de rádio por todo o país e protestaram contra a tentativa de golpe.

Outra familiar presente nesse momento histórico foi minha avó Neusa Goulart Brizola, que resistiu acuada na ala residencial do palácio, cercada por barricadas, sob a ameaça real de bombardeio temendo pela vida do marido e do irmão Jango. Naquele momento de tensão, Neusa entregou os três filhos, de 8, 6 e 4 anos, aos cuidados de uma amiga, preferindo correr todos os riscos ao lado do marido.

Brizola conseguiu a adesão do comandante do III Exército, general Machado Lopes, que passou para o lado legalista. O governador e o general surgiram como personagens emblemáticos nessa crise político-militar.

O conflito foi contornado com a imposição do parlamentarismo, sem o apoio de Brizola, e Goulart foi empossado presidente.

Entretanto, era o adiamento de um plano que se concretizou três anos depois com a deflagração do Golpe Militar de 1964, quando foi derrubado o governo constitucional do Brasil e instalada uma junta militar. Foi assim, as pessoas eram presas e tiradas de suas casas sem mandado. Muitos eram torturados e desapareciam. Em 1968 houve um golpe dentro do golpe, o regime ficou duríssimo e foi editado o Ato Institucional n.º5 cassando os mandatos populares e fechando o Congresso Nacional. Também foram cassados três ministros [juízes] do Supremo Tribunal Federal (STF).

Brizola até queria de novo liderar uma resistência armada, mas dessa vez não conseguiu. E por isso foi perseguido cruel e impiedosamente pelos militares e até pela Central Intelligence Agency (CIA), por que, quando então governador, nacionalizou as empresas norte-americanas que atuavam no estado do Rio Grande do Sul: a campanhia elétrica filial da Bond and Share, em 1959, e a companhia telefônica Internacional Telegraph & Telephone (ITT), já em 1962, justificando que ambas prestavam um mau serviço à população. É claro que com essa atitude Brizola tornou-se também inimigo dos EUA.

Ninguém teve a vida mais esmiuçada pelos Inquéritos Policiais Militares (IPM), às dezenas, seguido, investigado, grampeado e espionado quanto Leonel Brizola. Tornou-se inviável sua vida no Brasil, fato que o levou a viver 15 anos exilado em Uruguai, Estados Unidos e Portugal, esse que foi o maior exílio já imposto a um político brasileiro. Entretanto, a verdade histórica que ficou até o final de sua vida é que, ao lado de Leonel Brizola estavam as lideranças das forças populares, trabalhistas e os movimentos organizados de centro-esquerda.

Após 21 anos de ditadura, hoje, vivemos em um Estado Democrático de Direito, temos uma das Cartas Constitucionais mais belas do mundo, eleições livres e diretas para o executivo e o legislativo e uma democracia em permanente processo de construção e fortalecimento, embora vez ou outra ela é ameaçada.

Portanto no ano que marca 60 anos do Golpe Militar de 1964, a fala corajosa de meu saudoso avô Leonel Brizola, dita há 63 anos no auge da Campanha da Legalidade, parece atual: “Porque nós não nos submeteremos a nenhum golpe. Que nos chacinem neste palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Aqui nos encontramos harmônicos. Não daremos o primeiro tiro, mas creiam, o segundo será nosso”.

Quem diria que em 2024, ainda precisaríamos exigir respeito à Constituição?

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