Talvez seja nas mãos que se venha a estudar anatomia do adeus
Há quem tateie o mundo com as mãos, quem as recrute à falta de visão, quem as use em abundância. E há quem prefira escondê-las, e queira tê-las sempre guardadas nos bolsos, com medo de as desprender.
“Apesar de ser pequena em tamanho, a mão é uma das regiões do corpo com maior número de ossos, sendo formada por 27 ossos. Está dividida em três partes: carpo (o punho), metacarpo, e falanges (os dedos). Há mais terminações nervosas e sensibilidade fina na ponta dos dedos do quem em qualquer outra parte do corpo, o que resulta na capacidade de executar movimentos e tarefas com controlo, destreza, precisão — aquilo a que chamamos motricidade fina.”
Sempre gostei de olhar para as mãos das pessoas. Às vezes julgo que dizem mais do que os rostos, e muitas das vezes dizem mais do que aquilo que está a ser dito com a boca, com as palavras. Sempre me surpreendeu a forma como as mãos se movem, a querer falar também, como se por algum motivo se tivessem esquecido de lhes atribuir voz, mas elas teimassem em expressar-se: na forma como chamam e convidam quando se abrem silenciosamente, ou como reclamam quando endurecem cerradas, como gaguejam, nervosas, a tremer… No modo como seduzem, como aproximam, como acariciam e afagam.
No entanto, percebi desde cedo e com algum desconsolo, que não tinha grande vocação para a motricidade fina: controlo, destreza, precisão… Nunca tive. As evidências surgiram quando era mais nova e me começaram a delegar alguma autonomia de movimento. Numa proporção direta, as vezes que me largavam a mão, os meus pais foram confrontados com o exponencial aumento das suas despesas com objetos partidos. Sempre foi comum, durante a minha vida jovem (e adulta!) entrar numa loja de loiças, candeeiros ou uma vulgar mercearia e deixar um legado imediato de vários itens partidos.
A mesma falta de aptidão para manusear objetos ou calcular a distância e o volume das coisas ao meu redor aplicava-se não só a utensílios comuns, mas sobretudo a artigos desportivos como raquetes de badmington, bolas de ténis, tacos de snooker, que acabavam sempre por voar disparados das minhas mãos, por norma em direção a vidros, janelas, nucas e/ou narizes de pessoas desprevenidas, com resultados mais ou menos catastróficos.
Por algum motivo, as minhas mãos, igualmente unidas ao corpo como as restantes partes, pareciam esquecer-se de ligar ao cérebro — desemparelhavam, da mesma maneira que o Bluetooth da coluna portátil se desemparelha do telemóvel, para muita irritação do utilizador. Não conectavam o gesto e a sua função, o movimento com o objeto, o tamanho do impulso com a dimensão da realidade, e tinham uma invulgar propensão para entornar, esbarrar, rachar, quebrar, partir.
Assim, habituei-me a ter como extremidades duas mãos que embora pequenas, conseguiam provocar grandes estragos. E o problema não era apenas o embate e suas consequências. Era o tempo de compreensão dos danos, o tempo de chegada do sinal ao recetor: já que não eu me apercebia dos estragos no momento em que o impacto se dava, só entendia depois. Fora do momento, no tempo que sucedia a ação: quando os meus olhos iam encontrar os objetos partidos, esfrangalhados, rachados… Compreensão em delay.
Talvez por isso me tenha, desde sempre, habituado a reparar com mais detalhe nas mãos dos outros: nos nós dos dedos; nas linhas da pele, irrepetíveis de pessoa para pessoa, a desenharem caminhos que já sabemos de cor, como um mapa de trazer no corpo, para o caso de falhar o GPS; nas fendas e nos calos; na cumplicidade entre as mãos e os dentes que não se contêm em devorar as unhas até ao sabugo enquanto elas se deixam mastigar, deliciadas em serem consumidas; nas indecisões dos dedos quando se antecipam inquietos; no brilho do suor da palma da mão; na comunicação entre as mãos e os lábios, a falarem duas línguas diferentes, por vezes contrárias.
Há quem tateie o mundo com as mãos, quem as recrute à falta de visão, quem as use em abundância. E há quem prefira escondê-las, e queira tê-las sempre guardadas nos bolsos, com medo de as desprender, por não saber o que lhes fazer, como se elas fossem um animal não domesticado, que se possa comportar de uma forma errática, descontrolada, desajustada quando é posto à solta.
Mas a verdade é que quando estamos nervosos damos as mãos, quando estamos perdidos damos as mãos, quando estamos apaixonados damos as mãos e com elas damos o corpo, damo-nos inteiros. Por isso acho que as mãos são uma espécie de última fronteira: a extremidade entre o que somos e o que tocamos. Para nos agarrar, para nos ligar, para não nos perdermos, de dedos entrelaçados. Seguros pela delicada destreza dos movimentos das mãos. Pendurados pela ponta dos dedos. E só quando magoamos um dedo é que entendemos a falta que ele nos faz: aquele quase-nada preso à palma da mão, aquele polegar tão a sobrar, que é afinal um eixo essencial para apanhar o mundo — e quando ficamos sem ele, deparamo-nos com uma realidade escorregadia, feita de arestas impossíveis, difícil de agarrar.
Quando era mais pequena tinha a convicção que a grande maioria das coisas nascia das mãos. Pensava por exemplo, (ainda penso) que o sono nascia diretamente das festinhas que as mãos faziam nos meus cabelos e nas costas; que as pombas nasciam das mãos dos ilusionistas; que as moedas nasciam das mãos do meu pai quando ele fazia o truque da moeda. E ainda tenho a convicção que o ânimo nasce de uma mão no ombro diante da incerteza, que a dor nasce de um punho cerrado contra uma mesa que anuncia a força com que a zanga embate; e que de duas mãos bem apertadas uma contra a outra, podem nascer coisas que nem conseguimos nomear, só sentir: uma conversa que se desenrola na delicada motricidade dos dedos, sem correspondência no dicionário, nem tradução no google.
Entre outras coisas, comecei a acreditar que era nas mãos que nasciam as despedidas. Porque aprendemos a dizer adeus com as mãos. É universal: elevamos o braço e acenamos. O punho, o metacarpo e as falanges, com os seus 27 ossos a estenderem-se e a fletirem em simultâneo, como um pássaro prestes a levantar voo sem nunca se desprender completamente. Como se a palma da mão fosse a vela de um barco que se afasta, com a pontinha dos dedos a balançar ao vento, para nos fazermos mais altos, para nos fazermos maiores, enquanto a distância nos diminui. Para fazermos de farol, para avisar que mesmo que nos afastemos, há um braço esticado a tentar agarrar o intervalo que nos afasta, o tempo, e as coisas que não cabem na palma da mão.
Talvez seja nas mãos que se venha um dia a estudar a anatomia do adeus. Que se consiga compreender as suas formas e substâncias, dissecar os órgãos e tecidos que o constituem, examinar os músculos e tendões que se movem quando acontece, a sua relação com outras partes do corpo. Talvez o adeus se explique no carpo, no metacarpo, nas falanges… Na silhueta de uma mão que acena.
Quando cheguei a Lisboa passava diariamente pelo homem que ficava na praça do Saldanha a dizer adeus às pessoas que por ali passavam. Todos lhe chamavam o Senhor do Adeus, e respondiam-lhe de volta, buzinavam, acenavam, como se aquele gesto de despedida casual pudesse ser um semáforo, um símbolo da breve passagem que nos despede sempre de um lugar, repetidamente.
Há uma senhora velhinha que mora nas traseiras do campo desportivo perto da minha casa. Fica à varanda o dia todo, e sempre que passa alguém a correr, ela acena um adeus. Como se a mão dela estivesse programada para isso, como se não soubesse outra função a não ser a de se despedir. Eu corro e aceno-lhe de volta, e fico a fazer as contas improváveis de quantas pessoas ela já se terá despedido, para que o braço se tenha engasgado neste movimento… E de quantas pessoas nos despedimos, ou nos vamos despedindo, algumas sem darmos conta sequer que se afastaram, a acenar de mãos nos bolsos, até só percebermos depois… Em delay.
Há pessoas que não gostam de despedidas. Preferem partir sem levantar a mão, sem dizer adeus. Como se tivessem sido amputadas do movimento que anuncia a ida. Talvez porque acreditam que se não o fizerem, a palavra adeus não aconteça, como se assim não estivessem a partir, a rachar, a romper, a quebrar, a despedaçar. Talvez porque as mãos lhes pesem tanto que não conseguem ter força para elevar os braços. Ou talvez porque o ombro ligado ao peito lhes doa, fraqueje, e se recuse a içar o adeus que os dentes cerrados já devoraram até ao sabugo, e as mãos não tenham coragem de sair dos bolsos. Não sei…
Sei só que um adeus sem corpo, sem matéria, é o tipo de adeus que fica suspenso, é uma mão que não segura o outro. Uma mão que larga a outra mão, sem dar conta do que poderá acontecer ao resto da pessoa que está agarrada à mão e cai no precipício.
Não sei porque é que ele nunca se despediu. Numa manhã como as outras não estava, e depois continuou a não estar, como se a ausência se fizesse acontecer por si mesma. Só entendi depois. Fora do momento, depois do tempo que sucedeu a ação. Achou melhor assim, partir sem avisar, como se isso implicasse que não havia partida. Como se assim se fizesse sempre presente mesmo não estando lá. Como um fantasma. Ghosting. É o que se chama? É curioso como as palavras ditas em estrangeiro parecem ter a ousadia de querer retirar o peso das nossas palavras, a substância, o volume das coisas que às vezes não conseguimos nomear. Porque há palavras que podem ficar tão encravadas no corpo como uma unha teimosa e torta.
Julgo que foi por isso que ele preferiu não soltar as palavras de despedida: para não correr o risco que elas saíssem descontroladas, erráticas, com medo que fossem embater nalguma coisa, provocar um espalhafato. Partiu sem dizer adeus, nem com a boca, nem com as mãos, zarpou só como um barco fantasma, um barco pirata de velas pretas que não se distinguem na escuridão enquanto se afasta na noite. Sem acenos.
E imagina: quando se parte sem dizer adeus, fica só um aterro de coisas por dizer, um amontoado de palavras, braços sem mãos, mãos sem braços, músculos e dedos desligados, polegares fora do sítio, pulsos soltos. Fica só um vazio sem fronteiras, onde sobra tudo. Onde o depois nunca vem. Onde o movimento nunca termina. Sem controlo. Sem destreza. Sem precisão. Sem fim… As mãos privadas de função, sem nada onde agarrar. Falta, a anatomia do adeus.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990