Verso livre, branco
Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.
Se principalmente ontem,
tivesse havido entendimento, quer
dizer: nenhum dever a cumprir,
os prazeres todos expostos, à escolha
os licores, nada de sobressaltos, agilidade
sem consequências, o pensamento
capaz de ler frases sem freio mas
com a forma disposta a rigor,
podia-se amolar a língua dúctil,
sebo nos butes, solarina nos botões
do camuflado chique, limpar as armas,
fazer funcionar a dúvida, nada para fazer,
trabalho coisa nenhuma, é preciso recuperar
do que falta. Em definitivo, hoje
não há condições para trabalhar:
um apontamento aqui,
uma frase de apoio para amanhã, escolher
a palavra ardilosa e abriu-se a porta,
será o presidente? vem aí o prémio Camões?
Caramba, é esmagador, apesar dos tempos tão
lassos, estão a entrar poetas e políticos,
gente que lustra, galanteia, as assessoras
são como palimpsestos verdes, cada
vez mais ensimesmadas, brilhantes,
ainda assim a correr para trás: frescas
da muita virtude e glória, oxalá
se lembrem de pendurar os versos
dos ramos verdes das magnólias,
não da falsa canforeira, quer da camélia
leviana. Como trabalhar
a meio da semana? É preciso refletir,
voltar a ouvir o que não disse
o ministro da cultura, fechar a boca
sobre tanta virtude do cardeal rosa,
contente, cheio de si, alegórico, quem
sabe extractivista de uma das beatas,
inspirada. Não é preciso ir ao dicionário,
(escreve net! escreve net!)
bem se sabe que, por detrás de um grande
palácio, há sempre uma peça de teatro
com palhaços e trapezistas de gravata.
Pois na Quinta, descontente,
incrédulo, cheio de reservas, nada
se pode fazer, talvez ler um parágrafo
breve das cartas da Clarice Lispector
e adormecer, puxar um sonho cheio
de convulsões, comprar um caderno
novo de papel costaneira e a caneta certa,
quem puder, uma beretta transparente
que se faça derreter na pira invisível,
eufemismo com IA incorporada
para, sem espalhafato, subtrair
desígnio aos chefes conhecidos
e acompanhantes. Isso também vai passar.
Se, às vezes, se engole em seco
é por medo de perder: as estribeiras.
Já chegam o frio e dias muito longos, foge
coração para onde puderes, evita o caminho
de Odessa, o mar da China, não queiras
a aforia dos domingos de Lisboa, falsa, exótica.
Elanguescem víboras por entre as salas
do palácio, os lagartos fiéis, cinzentos
e vis, cobrem os telhados dos museus
desertos, das escolas, dos quartéis
de sapadores: tudo prepara a ordem
comum, mas já se sabe o que lhes fará explodir
a íris amarela, viscosa, cínica: a revolução.
Sugere-se que mobilem o quarto
com um arsenal moderno, da última
geração e sem problemas de fornecimento.
Enquanto não passa a corrida dos dias, não finda
o fluxo apurado dos versos, é preciso mudar
o tempo, já.
No dia das eleições.
Sairá, destas, um governo
de libações, poetas e artistas unidos, LPAU.
(não leias mais! não leias mais!)
Manuel Fernando Gonçalves, Bragança, 1951, professor, técnico superior dos ministérios da Educação e do Ambiente, quadro do PNL nos últimos dez anos de actividade. É autor de poesia e vive, actualmente, no início da estrada Atlântica, impreparado para ir.