Concerto festivo, com juventude dentro
Entre clássicos modernos e estreias absolutas de autores portugueses, foi rija a festa dos 30 anos do Festival Música Viva, cuja edição de 2024 arrancou na sexta-feira.
Para começar um festival, nada melhor do que uma festa. Tratando-se do Festival Música Viva, que celebra a sua 30.ª edição e continuará até dia 12 com um menu sonoro invariavelmente inovador — incluindo, a par de diversos conjuntos de câmara, um órgão histórico e a célebre orquestra de altifalantes — a festa foi a presença da Orquestra Metropolitana de Lisboa num programa que contou com solistas de grande gabarito, conjugando clássicos modernos (Schoenberg e Ligeti) e música novíssima de autores portugueses.
Nos primeiros 20 minutos pudemos ouvir o Concerto para Piano de Arnold Schoenberg (1874-1951), composto nos Estados Unidos em 1942. É uma partitura particularmente feliz na sua conjugação de intimismo e extroversão, de fluência e de rigor construtivo, de leveza e de seriedade. À delicadeza do tema inicial, ilustrativo do mote "a vida era tão fácil" (andante), seguem-se nuvens ameaçadoras, tendo como pano de fundo o nazismo e a guerra — "subitamente surgiu o ódio" (molto allegro) e "criou-se uma situação grave" (adagio) — mas, afinal, "a vida continua" (giocoso) e há lugar para a brincadeira.
A orquestra, conduzida por Pedro Neves com admirável verve e segurança, foi exímia a realizar uma escrita exigente, entrecortada e de velocidade muito cambiante; o jovem José Pedro Ribeiro, ao piano, logrou envolver o público no caleidoscópio emocional que anima a parte de solista, através de invulgares dons de modelação melódica, domínio dinâmico e precisão rítmica.
Seguiu-se a estreia absoluta de uma obra de António de Sousa Dias (n. 1959), encomendada pela Miso Music Portugal e terminada este ano, Palimpsestos – Vestígios. Sóbria, quase reticente no início, ela impõe-se paulatinamente, de maneira invulgarmente elegante, exibindo o leque tímbrico através da alternância entre um conciso desfiar melódico e blocos de irrupção rítmica. Já Greeting, de João Madureira (1971-), encomendado pelo Festival Internacional do Estoril em 2010, articula três secções, contendo cada uma delas uma variação em torno do gesto melódico germinal; a obra, privilegiando os registos médio e agudo e o trabalho dos sopros, emana calma e delicadeza, centrada que está num motivo largo e reiterado, animado em contraponto por rendilhado subtil, como se uma brisa fora animar a contemplação do Sol nascente.
Estética completamente diferente é a da peça que se escutou de seguida: La Transfiguration de l'Impossible (2021-2022) de Miguel Azguime (1960-). Diria que o seu impacto é cinematográfico: uma tela larga que se desenrola sem peias; som orquestral desatado, totalizante, incluindo um raro solo de timbales; evocação atmosférica de familiar estranheza, tendo por horizonte novos Encontros Imediatos (porventura de 3.º e 5.º graus). É um filme não de íntimos sentimentos, mas de grandes eventos, no qual as linhas podem surgir distorcidas, microtonalizadas, em queda, mas onde é perceptível a solidez na construção, a coerência na transformação do material, o cuidado no desenho da forma (com o final a retomar o início): aposta claramente ganha.
Todos os três compositores, presentes no evento, receberam longo e justo aplauso. O mais espectacular do concerto, contudo, estava reservado para o seu termo: Mysteries of the Macabre (1991), arranjo para orquestra de câmara de três árias da ópera de György Ligeti (1923-2006), Le Grand Macabre (1974-1977). Esta pequena suite, aqui cantada em inglês, pode ser realizada por dois tipos de solista: soprano-coloratura (correspondendo aos papéis originais de Vénus e de Gepopo) ou trompete em dó, o que já nos alerta para uma linha melódica aventurosa, quebrada, de excepcional volatilidade.
Os músicos entraram como para uma manifestação, com cartazes em papel de cenário ("Hunger", "Genocide", dir-vos-á alguma coisa?) que, de facto, estão previstos na partitura, para romper e amachucar. Depois foi um fogo-de-artifício, protagonizado pela orquestra e pela solista, a jovem Camila Mandillo, que deixou a assistência boquiaberta quer com o virtuosismo vocal, quer com o talento dramático. Uma voz limpa e bem timbrada que não tem medo das alturas, domina todos os possíveis modos de emissão e cavalga a escrita mais exigente com o à-vontade de um João Núncio. Olé! A festa foi mesmo rija.