A passagem do noroeste

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

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Amámos um dia a ideia de Revolução.

Ela era, afinal, uma prática intensíssima através da qual haveríamos de
transportar os nossos medos e as nossas exasperações para regiões
propícias à reinvenção perene da vida.

A cidade agitava-se com o que dificilmente seria enunciável e que
permanecera latente nos baldios da história.

Essa fora a razão por que circulávamos por linhas de caminho de ferro
abandonadas e fábricas despedaçadas por um Inverno de almas onde a
conformidade era diferença inassimilável.

Dispunhamo-nos ao prodígio do acidente e do resto.

Uma embriaguez fundamental tomava-nos de assalto.

Encontrávamo-nos em praças e, senhores do mundo, rasurávamos a inércia
material que se inscrevia nas paredes de gelo alcandoradas no império da
desolação.

Uma imagem persegue-me ainda: a do velho andrajoso que a nós se juntava
garantindo ser ele o «Anticristo».

Hoje, ao caminhar pela cidade — uma cidade que não reconheço, feita de
azáfamas de consumo e ganância — recordo os seus gritos e vituperações.
A cidade é a perdida estação da nossa biografia, aí onde jaz sepulta a
memória que um dia foi beleza e desejo. (Ah, os inermes regressos da
beleza e do desejo que nos faziam assumir todos os riscos e todos os
infortúnios.)

Dioniso contemplava-nos, e nós reconhecíamo-lo no interior remoto da
floresta de símbolos atenuados.


Luís Quintais. Poeta, ensaísta, antropólogo e professor na Universidade de Coimbra. O seu último livro de poemas intitula-se Nocturama e foi publicado recentemente pela Assírio & Alvim.

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