Branca Carvalho, a mulher que resistiu dentro e fora da casa clandestina
No 1.º de Maio de 1974, o primeiro celebrado sem repressão policial após 48 anos de ditadura, Branca Carvalho distribuiu propaganda que fizera numa tipografia clandestina.
Branca Carvalho até se riu quando viu a propaganda que o irmão mais velho tinha para distribuir no 1.º de Maio de 1974, no Porto. “Abaixo a vida cara! Fim às criminosas guerras coloniais! Por aumentos de salários e melhores condições de vida! Abaixo o Governo fascista! Façamos do 1.º de Maio uma grande jornada de luta!”
Passara quase um ano a trabalhar para o Partido Comunista Português (PCP) na clandestinidade. Numa divisão da casa que partilhava com um camarada, em Valbom, Gondomar, tinham montado uma tipografia. Compunham textos letra a letra, num prelo com rolo de impressão.
Naquele ano, a Páscoa calhou em Abril. “Nós passámos dias e dias e dias a ouvir missa para abafar os ruídos. Janela fechada. E zin, zin, zin. E o rádio na maior das alturas. Já não podia ouvir mais missa na vida.” Fizeram cinco mil documentos daqueles, intitulados “Abaixo a vida cara! Abaixo o fascismo!”
De repente, a Revolução saíra à rua. E ali estava ela, na Baixa do Porto, com os pais, os irmãos, as irmãs, os sobrinhos a celebrar o 1.º de Maio com cravos e propaganda. “Que estranho. Eu fiz isto há três semanas, quinze dias, e agora ando aqui a distribuir.”
Consciência política em casa
Branca estava prestes a fazer 21 anos. A sua consciência política não era coisa recente. Aos 11, concluída a 4.ª classe, fazia limpeza em casa de familiares. Aos 13, assumiu uma tabacaria aberta pelos pais numa janela lá de casa. Depois, trabalhou num supermercado, num café, num escritório, numa livraria. E, no entretanto, voltou a estudar e conheceu muita gente com consciência política. Mas situava o princípio de tudo na família, no Porto.
O pai cedo tratou de consciencializar os sete filhos sobre as más condições de vida. Ouviam a Rádio Portugal Livre. “Íamos para uma varandazinha e o meu pai punha o rádio e nós fazíamos rodinha à volta dele para ouvir o que se dizia. O rádio, não sei por que razão, só funcionava com uma cafeteira de água em cima. E nós partíamo-nos a rir.”
Aos 16 anos, Branca já estava envolvida na política. Foi nas eleições legislativas de 1969. “Em 1972, aderi ao Partido Comunista e participei naquela grande manifestação que se fez no Porto contra o custo de vida.” Distribuiu panfletos com um rastilho. “Vamos todos protestar contra a subida do custo de vida. Todos, na Praça da Liberdade, às seis e meia da tarde, no sábado 15 de Abril.”
Às 18h40 daquele dia, alguém levantou uma bandeira nacional e caíram milhares de panfletos e de vários lados as pessoas gritaram palavras de ordem. As forças policiais, fardadas e à paisana, investiram com cães-polícia, cassetetes e maracas de aço contra os manifestantes. Branca Carvalho fugiu, mas não se amedrontou.
Participou no Congresso da Oposição Democrática, em Abril de 1973. No dia 19 de Maio desse ano, por volta das 19 horas, foi com a irmã gémea, Maria Fernanda, à Tipografia Vale Formoso, ali perto de casa, imprimir 18 mil panfletos sobre Catarina Eufémia, morta por um elemento da GNR por lutar por “pão e trabalho”.
“Tal como Catarina Eufémia, milhares de mulheres portuguesas têm sofrido a repressão, a fome, e a miséria”, lê-se no panfleto, assinado Movimento Democrático das Mulheres. “Muitas têm morrido e vão morrendo lentamente de fome e por doença, cujas causas são as más condições de vida e a falta de assistência médica. Apenas por lutarem por melhores condições de vida para o povo português e por se manterem firmes nos seus ideais democráticos, centenas de mulheres têm sofrido nas prisões da PIDE/DGS.”
Fora um passo arriscado. Um dirigente do partido avisou-a: “Rapariga, vocês fizeram uma coisa muito interessante, mas tenham em conta que a PIDE vai procurar-vos rapidamente.” Apontou-lhe dois caminhos: “Olha, é agora que vais decidir passar à clandestinidade ou vais correr o risco de, provavelmente, ser presa.” E ela não hesitou. “Então vou. Está resolvido.”
Três pessoas foram presas, na Amadora, por andarem a distribuir aqueles e outros panfletos. O sócio-gerente da tipografia foi chamado à PIDE/DGS. Maria Fernanda, também. De Branca nem sinal. Os pais disseram ao agente que foi lá a casa procurá-la que ela estava de férias.
O agente não acreditou, a avaliar pelo relatório que então escreveu. “Andaria ligada a indivíduos suspeitos de desenvolverem actividades subversivas ou pelo menos esquerdistas e o seu desaparecimento pode estar relacionado com essas actividades. É possível que Branca Carvalho seja actualmente ‘funcionária’ do PCP, a viver na ilegalidade, e daí ser desconhecido, até para os pais, o seu paradeiro.”
Branca estava a fazer de conta que era uma doméstica casada com um homem, que fazia de conta que era um desenhador. Chamava-se Mariana.
Mudara de nome e de estilo. “Eu gostava de [me vestir] assim um bocado hippie, não é? E de usar a minha boina e de me maquilhar.” Nada podia levar. Na casa clandestina, o partido deixou várias peças de vestuário. “Fazia-me muito mais velha. Muito pesada.”
Naquele tempo, uma mulher a viver sozinha numa casa despertaria curiosidade. Para sobreviver na clandestinidade, havia que aparentar uma vida comum. A regra era um casal heterossexual – real ou fictício. Para encaixar no papel, além de uma peruca com madeixas louras, Branca comprou uma aliança.
Os papéis de género estavam muito definidos. O usual era o homem desempenhar tarefas no exterior. Era ele quem contactava outros elementos do partido, debatia a situação política, as lutas a travar. À mulher cabia defender a casa. Onde já se vira uma mulher andar por aí?
Branca não acatava o papel então atribuído às mulheres. Não se via como uma semi-pessoa, devotada à família e ao governo doméstico. Fazia as lides da casa e protegia-a – estabelecendo relações cordiais com vizinhos e estando atenta aos sinais suspeitos –, mas não só.
“Eu também compunha texto e também imprimia”, diz. “Era um bocadinho mais sobrecarregada do que ele.” De manhã, ele saía de rolinho na mão, como se fosse para o emprego. E Branca ficava a lavar, a limpar, a arrumar, a cozinhar. “Depois, sua excelência chegava. ‘Vamos almoçar.’ ‘Vamos trabalhar.’ E trabalhava ao mesmo nível.”
Um desafio governar a casa com o magro salário pago pelo PCP, que tinha uma rede de recolha de fundos e donativos para financiar o aparelho clandestino. “Tínhamos de fazer umas refeições muito pobres.”
Avanços indesejados
Estavam naquilo havia poucos meses, quando Branca foi surpreendia pelos avanços do camarada. “Ele convidou-me para ser companheira dele. E eu disse que não.”
Adensou-se a solidão, que já era tão extensa, tão intensa. Tomada por uma missão secreta que a obrigava a fazer-se passar por quem não era, Branca não podia contactar familiares, não podia contactar amigos. Só saía para o indispensável: fazer compras, entregar material, seguindo sempre pelo itinerário indicado, a pé. A casa era suposto ser o lugar onde se sentia segura.
“Durante 15 dias deixou de me falar”, conta. “Eu também tomei uma atitude. Primeiro dia, segundo, não fala. O que é que eu decidi fazer? Fazia-lhe a comida. Cozinhava para nós. Mas cozinhava só para ele. Não fazia para mim. E eu bebia o leite. O pão. Assim umas coisas. E não me sentava com ele à mesa. E ele nunca me perguntou. O que é que se passa? Vamos lá conversar. Nada."
Os casais das casas clandestinas eram acompanhados por um suposto “irmão”, “tio”, “primo”, que ali vinha de quando em quando. Quando o suposto tio apareceu, Branca já tinha perdido seis quilos.
“Acho que o PCP na altura, como em outros momentos da vida, tinha uma atitude um bocado machista”, comenta. “Quem ouviu primeiro? O camarada.” Quando chegou a sua vez, Branca não encontrou a condenação que esperava. “O que ele disse: ‘Isto é natural.”
Havia um contexto que só mais tarde Branca havia de compreender. “Em geral, todos os camaradas, homens e mulheres, que foram para a clandestinidade sem os seus companheiros ou companheiras tiveram este tipo de relação. Foi natural. Estavam na mesma casa. Foram criando laços de amizade. E não só. Claro que depois do 25 de Abril aconteceram os divórcios.”
Após aquela intervenção, o parceiro mudou de atitude. Continuaram a trabalhar com a promessa de que Branca iria para outra casa no país ou até mesmo no estrangeiro. Nem imaginava que, nas suas costas, o partido tratava de lhe arranjar marido.
Antes de mergulhar na clandestinidade, namorava com um universitário. O partido contactou-o. Soube-o naquele 1.º de Maio de 1974. Ele é que lhe disse: “Ah, eu também fui convidado para ir para a clandestinidade. E parece-me que ia estar contigo.” Branca levou as mãos à cabeça: “Ó, valha-me Deus. Do que haviam de se lembrar!” E, mais tarde, confirmou aquela informação.
A sonhar com a possibilidade de fazer o jornal Avante!, naquela tipografia compunham e imprimiam dois jornais sectoriais – O Têxtil e O Camponês. E documentos com os quais esperavam aumentar a consciência das massas contra o fascismo e as guerras coloniais.
Agiam com todos os cuidados conspirativos recomendados. Não podiam ter fotografias nem outras marcas pessoais. A qualquer momento, poderiam ter de sair, de passar para outra casa clandestina, assumir outro nome. Também podiam ir para a prisão.
Três dias antes do 25 de Abril, foram avisados: tinham de se preparar para sair de casa. O suposto “tio” que ia lá a casa tinha sido preso. Acontecendo algo assim, mais valia prevenir. Quem sabe que informação poderia sair-lhe ao ser torturado pela PIDE/DGS?
“No dia 25 de Abril, eu estava à porta de uma loja para comprar as malas para carregar os materiais todos da tipografia”, recorda. “Comecei a ouvir na rádio que havia um movimento de militares, disto, daquilo, daquele outro. Disse assim: alto! Isto parece uma coisa já... democratas e assim... Deixa ver... Voltei para trás. Não comprei malas.”
Cautelosos, os dirigentes do PCP só no dia 29 de Abril os autorizaram a ir a casa. Uma alegria, o reencontro familiar. A mãe teve uma reacção curiosa: “Ela tinha alguma revolta por eu ter deixado a família. E não entendia a minha decisão. De maneira que naquele dia foi a raiva dela. A raiva e o amor, que saltou tudo nesse dia. Chegou à minha beira. Prás! Nunca mais voltas a sair de casa. Eu disse: Não, agora não preciso. Pronto. Ficámos por aí. Mas foi uma alegria imensa.”
No 1.º de Maio, que explosão! A Avenida dos Aliados e a Praça da Liberdade não chegavam para acolher tanta gente. Durante a ditadura, a celebração do Dia do Trabalhador era reprimida pelas polícias. Naquele dia, de norte a sul do país, as pessoas saíram à rua. "O povo unido jamais será vencido!", gritavam. "Fascismo nunca mais!"; "Liberdade, liberdade, liberdade!"
“Muita, muita gente”, diz Branca. “Foi isso, sobretudo, o banho da multidão, de alegria que as pessoas sentiam. Abraçávamo-nos uns aos outros. Reencontrámos montes de pessoas que já não víamos há muito tempo. Foi uma coisa espantosa mesmo.”
Numa faixa gigante, empunhada naquele dia, lia-se a letras garrafais: “Paz, pão, terra, liberdade”. Tudo parecia possível. “Idealizava um mundo onde nós tivéssemos liberdade, o que aconteceu no 25 de Abril”, diz. O idílio, para si, estava do outro lado da cortina de ferro. Custou-lhe, mas, com o tempo, percebeu que a União Soviética não era o que imaginava. “Fomos enganados.”
Fez parte do Comité Central. Foi candidata à Assembleia Constituinte pelo Porto. Foi eleita deputada na Assembleia Municipal de Viana do Castelo. Foi vogal na Junta de Freguesia de Monserrate. Saiu do PCP em 2002, alegando “discordâncias profundas” com o partido.
Reinventou-se. Fundou um centro de actividades de tempos livres e lá trabalhou 15 anos. Agora, que está reformada, é uma entusiasta da Universidade Sénior. Sempre pronta para partilhar a história de resistência antifascista de que faz parte.
“Acho que é necessário avivar memórias do que foi antes e falar do que estamos a viver actualmente.” Pontes? “A vida cara.” Mais: “A época melhor foi quando o salário dava para isso tudo. Agora já não dá.” E os direitos das mulheres? “Depois do 25 de Abril, o que é que teve? Foi muito bom para o que tinha antes. Eu tenho muito medo que haja algum retrocesso.”
Continuam actuais as palavras de ordem distribuídas no 1.º de Maio de 1974 que Branca compôs e escreveu no prelo pesado, barulhento, em Valbom, Gondomar: “Abaixo a vida cara! Fim às criminosas guerras! Por aumentos de salários e melhores condições de vida!”
Clandestinos é uma série coordenada por Inês Rocha para acompanhar neste mês de Abril e até ao Primeiro de Maio. Cada episódio traz um jornalista e uma história diferente.
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