A pressão dos pares: E se eu não for o suficiente?

É dia de estreia. Dentro de momentos as portas do teatro vão abrir-se para a apresentação de uma peça que escrevi e estou num nível de nervosismo máximo, incomportável, pré-catastrófico.

Foto
"Quando somos crianças e nos dizem que somos espetaculares, acreditamos" Ilustração: Rita Lagarto
Ouça este artigo
00:00
10:32

Está uma multidão (bom, se calhar não exatamente uma multidão, mas umas dezenas de pessoas) à porta do teatro, à espera para entrar. Assim todos juntos parecem um grupo de lémures empilhados uns em cima dos outros. Ou suricatas amontoadas, de pescoços esticados e olhos esbugalhados, à espera de caçar um inseto voador ou rastejante, num episódio da BBC Vida Selvagem.

Estou à espreita, atrás da porta de vidro do foyer, agachada entre as poltronas vermelhas de veludo e a mesinha do cocktail, camuflada no meu vestido vermelho, exatamente da cor do forro das poltronas, para passar despercebida, enquanto observo o comportamento dos mamíferos, como um fotógrafo da National Geographic.

É dia de estreia. Dentro de momentos as portas do teatro vão abrir-se para a apresentação de uma peça que escrevi e estou num nível de nervosismo máximo, incomportável, pré-catastrófico, grau 9 na escala de Richter. Os meus dedos tremem sem eu lhes dar autorização, as unhas acabadas de fazer reluzem uma intensíssima inquietação das cutículas, a temperatura está amena mas só do meu corpo para fora, porque do meu corpo para dentro um calor insuportável comprime-me as têmporas, o peito, o estômago. Ansiedade em ebulição: nervosismo terminal.

O meu vestido que já é justo e requer destreza e muitas lesões nos ombros para ser vestido, está agora colado ao corpo em processo de vácuo, não vai mais sair desta posição, quanto muito só vou conseguir sair dele de rasgão. Congelei um sorriso Miss-Simpatia-quando-lhe-pergunta: “Qual o seu desejo para o planeta?” e ela bloqueia e responde: “Erradicar as crianças do mundo, e ajudar a fome nos países subdesenvolvidos” — e é este sorriso que vou usar o resto da noite, o meu rosto não vai mais conseguir sair desta posição.

Reparo na fila de pessoas que procuram ainda levantar os bilhetes de última hora na bilheteira. Estão longe, não consigo decifrar quem possam ser, devia ter trazidos os meus binóculos de safari, os meus óculos para ver ao longe. Humedeço os lábios, esgueiro-me entre os pés da mesa, debruço-me, com a cara suada colada ao vidro, como se estivesse diante de um aquário a examinar o comportamento do cardume.

Reconheço as silhuetas de alguns dos meus amigos e familiares, de colegas de profissão, diretores de companhias. Vejo os braços animados da minha mãe, a gesticular entre as pessoas (espero que não esteja a contar aquela história de quando eu fiquei com os pés tão inchados que ficaram entalados nas sapatilhas, ou a dizer que em criança eu tinha as bochechas tão inchadas que parecia que iam rebentar, e os olhos tão arregalados que me levaram ao oftalmologista e fui diagnosticada com “olhos-excessivamente-abertos”).

Vejo silhuetas que não reconheço: um grupo de espectadores está à porta e eu espio-os, como fazem os detetives nos filmes policiais, atrás daquele espelho que existe na sala do interrogatório, a fingir que é só um espelho, mas que toda a gente sabe que é a vitrine através da qual observam o suspeito. Lembro-me da cena em que no filme se alinham os prisioneiros e perguntam à testemunha: “Reconhece alguma destas pessoas?” Assim, voltadas de costas, não reconheço nenhuma delas. Chega mais gente. O meu coração dispara. Tento decifrar o estado de espírito dos seus corpos, ler o que dizem os seus lábios, espero que estejam de bom humor, espero que sejam gentis…

Oiço a voz britânica do David Attenborough, dobrada com a locução em português do Brasil, nos meus ouvidos: “Esta espécie de predadores-espectadores fareja à distância a mais pequena falha de concentração, falta de criatividade e erros… Alimenta-se de enganos, imperfeições, irregularidades de talento, protuberâncias de presunção, referências duvidosas, falta de cultura erudita… Devora crias que cometem gafes, lapsos e… Desculpe… Desculpe… Desculpe!” Alguém me toca no ombro. É o funcionário do teatro responsável pela abertura de portas. “Desculpe, vamos abrir as portas ao público.”

Piso a ponta dos dedos da mão com o joelho, disfarço a posição quadrúpede com um gesto deslocado da lógica, grasno um: “Estava só à procura do brinco que me caiu agora mesmo olha cá está ele já achei” — sem pausas. Componho o vestido. Entro na sala e detenho-me por um momento diante da plateia vazia, à espera de ser ocupada pelas cabeças que se acumulam lá fora, cada uma com a sua voz, comentário, ideia, opinião, validação.

“Calma… Isto não é minimamente importante, por amor de Deus! É só uma estreia! É só um espetáculo de teatro, se correr mal, não é o fim do mundo. Qual é a pior coisa que pode acontecer? Não sou um piloto a aterrar um avião à pinha com dois motores em falha no Rio Hudson… Não sou o Kofi Annan, em negociações no Médio Oriente. Não sou a responsável pelo lançamento da sonda a Marte que pode explodir mal sai da atmosfera. Calma!” Mas nada disto me acalma, da mesma forma que não acalma dizer a uma pessoa que tem pavor de andar de avião que tem mais probabilidades de ganhar o Euromilhões do que de ter um acidente aéreo. Eu nem sequer jogo no Euromilhões! Aposto-me toda aqui, no teatro, all-in como no póquer.

O público está a entrar!” Vou para a minha posição nos bastidores. As minhas têmporas latejam, a minha boca seca, o Attenborough relata: “Repare-se no pescoço em modo alerta, nos dentes demasiado visíveis da presa, nos olhos-excessivamente-abertos: este fenómeno chama-se peer pressure!” Pressão dos pares? Quem me dera… Preocupo-me com os pares, mas com os ímpares também! Com todos os que vão aterrar nas cadeiras numeradas, sem imaginarem que esta manhã tomei um duche gelado porque dormi mal, que dormi mal porque não preguei olho desde as quatro da manhã, que não preguei olho desde as quatro da manhã porque tenho medo que o cenário caia, que a música empanque, que o ator tenha uma indigestão, que o público apupe, que atire tomates como no tempo do Shakespeare, que saia da sala zangado, que peça o dinheiro do bilhete de volta, que alguém se levante no meio da plateia e grite: “É ela! A suspeita número dois. Aquela de vestido vermelho! Foi ela quem cometeu o crime! Escreve peças de teatro mas nunca leu A Guerra e Paz do Tolstoi!”

Quando somos crianças e nos dizem que somos espetaculares, acreditamos. Acreditamos que somos mesmo espetaculares, os melhores, os reis da festa. Achamos que seremos únicos, especiais, e quando damos por ela, os pés crescem de repente, e andamos de pés entalados nas sapatilhas, a tentar não pisar ninguém, e tentar não tropeçar nos nossos próprios sapatos, entre tantos pares de pés como os nossos, a perceber que, às vezes, na maioria das vezes, não somos os mais espetaculares, nem os melhores, nem mais especiais.

Quando era pequena achava — tinha a certeza! — que ia ganhar o Óscar de melhor atriz aos 24 anos (tenho 41 anos e ainda acho que vou ganhar Óscar de melhor atriz aos 24 anos), achava que era espetacular! Mas quando comecei a crescer esbarrei com a incapacidade de ser espetacular em várias coisas. Várias. Por exemplo, quando comecei a praticar aulas de Educação Física, confrontei-me sistematicamente com o tenebroso momento em que se escolhiam as equipas de andebol ou de futebol e eu era sempre a última a ser escolhida. “Sobra a Ana… Fica na vossa equipa.” “Não deixem estar… pode ficar na vossa...” Na selva um animal abandonado pela sua manada raramente sobrevive em campo aberto. É carne para canhão. Para leão.

Oiço as passadas do público que galopa na plateia para ocupar os lugares. Ninguém quer ser carne para leão… E se descobrem que afinal não tenho bom gosto, boas ideias, que há pontas soltas, que não faço sentido, que faço demasiado sentido, que devia ter estudado mais, que devia ter ido para o estrangeiro, que devia ser melhor? E se descobrem que não gostam de mim? Nem um bocadinho… E se eu não for suficiente? E se me deixam sozinha o meio da selva?

Certa vez, estava a atuar e caí em cena! Tropecei nas escadas do cenário, dei um salto de pinguim e fiquei estatelada de rabo para o ar enquanto os espetadores sentados à minha volta, me olhavam boquiabertos. Num rasgo de intuição animal, desatei a rir. Ri às gargalhadas, como uma hiena tresloucada, até sair do palco. Desvendar publicamente os nossos erros, as nossas falhas, despir as nossas virtudes, pode ser assustador. Talvez seja por isso que fico tão nervosa, porque sei que irão ver as minhas quedas, os meus trambolhões, as vísceras das minhas imperfeições, as miudezas dos meus devaneios, as vozes esquisitas que trago comigo, até aquelas que se parecem com a do Attenborough.

A luz da plateia apaga-se, o palco acende-se e as cabeças nas cadeiras olham numa única direção, atentas, como uma manada de zebras diante de um rugido. O espetáculo vai começar…

Lembro-me das palavras do dramaturgo Samuel Beckett (que não se importava de ter o cabelo em pé, e parecer uma iguana de crista espetada): “Nunca ter tentado. Nunca ter falhado: Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.” O meu corpo sente uma descarga de adrenalina. Recosto-me na cadeira e faço tréguas com o incontrolável. Repouso na certeza da falha. Na beleza da falha. Na imperfeição do texto, na música que irá desafinar, na respiração que vai fracassar, nas gafes do espetáculo que se passa ao vivo, que acontece uma vez, e que nunca terá possibilidade de se repetir, de se redimir com a fantasia da perfeição. Como todos os lapsos, os enganos, os erros, como todos os episódios da nossa vida, em que falhámos, que nunca vamos repetir, e de alguma forma nos fizeram ser este personagem e não outro.

Uma amiga violoncelista conta-me que tocou uma peça clássica mil vezes antes de fazer uma prova na qual um júri de pares assistia — é uma violoncelista excecional, estudou nas mais prestigiadas escolas dos EUA, foi selecionada para lugares de destaque entre os melhores. No entanto, assim que pousou o arco nas cordas falhou as primeiras notas. “Mil vezes” não tinha sido o bastante para caçar as vozes que lhe diziam que não era suficiente. Não sei porque é que às vezes ainda volto ao campo das aulas de Educação Física (mesmo acreditando que sou respeitada pelos meus pares, às vezes até pelos meus ímpares, e sobretudo que tenho o afeto dos meus)? E por vezes tenho a sensação que não vou sair mais desta posição, que só vou conseguir sair de rasgão.

Se calhar nunca somos o suficiente. Mas fico sempre a pensar naquelas pessoas que dizem: “Eu não me importo com o que os outros pensam de mim!” e a quem eu sorrio enquanto fico importada se tenho um bocadinho de alface nos dentes, ou uma gafe colada nos lábios, porque me importo, mesmo sabendo que não vão todos gostar, mesmo sabendo que os que gostam não vão gostar sempre, importo-me com o que os outros pensam de mim. Claro que me importo! Mas afinal estamos onde, na BBC Vida Selvagem?


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Ler 1 comentários