Alfabeto indisciplinado
Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.
b)
Manhãs como folhas em branco,
prestes a reconhecer as caligrafias
mais incertas, páginas
de versos depois do negrume,
cores que desejam caminhos;
advertindo-nos para jamais
desistirmos de ser essa dança
livre,
convocando incêndio e ferida,
tempestade e apaziguamento,
mortos e vivos para uma festa
que transmute a tristeza
rectangular das praças
e aproxime a voz de um
canto antiquíssimo.
y)
Viajem interestelar
estilhaçando os ecrãs
magoados do futuro?
s)
Da cidade das palavras
à cidade dos olhares e
das vozes e dos aromas
e dos gestos
e o poema pergunta:
como se passou de um inocente ardor
de corpos incandescentes
a um tempo de solidão entre amigos,
desejo de trégua e silêncio?
De uma desordem magnânima e expectante
de palavras e coisas matinais
a uma luz vespertina
feita de restos, desperdícios,
imagens desbotadas em exposição?
f)
E o poema pergunta outra vez
porque ninguém
anjo ou horizonte
parece escutar:
como viver
sem repetir,
redizer o idêntico
ou na paisagem
repensar (reparar?)
o erro da pedra
a falha da voz
o vazio do céu
a interrupção do beijo
a ausência do corpo?
Um novo espaço
de conversação
e encontro
com todos os seres
sem que a vozearia comercial
silencie a voz solitária e audaz
de deserto em deserto.
g)
Provavelmente os que vão nascer
irão erguer novas barricadas
misteriosas.
j)
O medo é como um sol
que golpeia e reduz
o tempo a uma coroa
de espinhos.
Quando a revolução televisionada
nem em alta definição comove,
vai, poema, por entre a multidão
rumo à rapariga que levanta o rosto
para a luz da manhã.
No entanto, o que fazer
se tão poucos se mostram
reconhecidos do trabalho
fraterno da palavra?
p)
Não ergas muros em torno da palavra.
Deixa-a ser do tamanho do mundo e
fluir com o vento e o mar,
florir onde o silêncio reconstrói o ar
e o desencanto irradia tal um pomar.
Teme o pranto e o embelezamento, ó palavra,
e prefere a música atonal e a aspereza;
e pela noite, quando a insónia perturba,
domina os teus sonhos de grandeza.
E ama o que em ti recusa a turba.
a)
Se vais dizer a verdade
esquece as vestes do deus que
não reflecte e só duvida;
com a palavra escala
montanhas, silvas
e escuta a memória
dos líquenes e das pedras
feridas e da pele animal
dos massacres.
e)
Pelas ruas do centro,
noites esfaqueadas,
o que leva ao precipício,
mas também palavras
orquestrando quem chegará
sereno junto ao mar,
danças diante do vento
que aplaude
e não convida à prostração:
libações, oferendas
a deuses que são como
pássaros extraviados:
como convencê-los a depor
a máscara, e a não fazer
de nós mortais irados?
c)
Ó esquecido dos oceanos,
dos animais e das árvores:
ouço-te dizer que a noite
é o prefácio de um tempo
que venera o medo
e a nudez urbana.
Contigo perdemos o rasto
às doces armadilhas do olhar
e pelos caminhos encontramos
a palavra apodrecida.
v)
O poema, uma dança;
repetição, movimentos, improvisação;
entre a disciplina e a liberdade.
x)
Esta folha de papel
este ecrã ligado
todo o dia
tem acaso e necessidade
dor e maravilha
dentro de si
fios de sentido e significado
perscrutando a direcção
das nuvens sobre o rio
e dos passos que se encaminham
saltando os muros e os charcos
para a ágora.
Cataratas de imagens
cores sons palavras e aromas que
floresceram
e não faltam testemunhas
capazes de compreender a música
que nos falta
o rosto devastado a procurar esquecer
como tudo se transforma
noutra coisa
diluída, um drama televisivo,
uma cópia
da nossa verdadeira vida
e o poema pergunta:
até quando irás ter esperança e
desejo renovado de alegria?
l)
Quanto à ideia de mudança:
ainda não cheguei àquele momento
da vida em que tudo parece ser
em vão e prenúncio de um fruto amargo.
Num tempo que multiplica lugares
enxameados de câmaras de vigilância
ela e ele escolheram uma casa onde ser
como portáteis câmaras de filmar
registando todos os movimentos
todos dos gestos que rasuram
a ansiedade e os medos e alteiam
o corpo e a voz num timbre claro.
u)
Hoje, não desconsidero a fala da rua,
o rumor rapace da sombra,
o caminho até ao jardim esboroado,
a igreja de azulejos azuis
entre um guindaste e um mercado.
Mas procuro escutar também
com outros mestres: a buganvília
o melro o rio e o mar e o vertical sol
que vivem na mesma cidade que eu.
Agora. Este é o mundo.
d)
Aprender a caminhar sobre gelo fino
na escuridão,
conduzidos pela labareda dos sentidos,
revigorou-nos.
h)
Noites perscrutadoras:
um tactear de dedos e florações;
um entendimento não premeditado;
a necessidade de horizonte.
i)
E saber que nunca te desencorajas
pela falta de uma compreensão total
ou pela chegada de uma nova contusão.
Antes procuras geografias distantes,
lugares dentro de ti ainda não totalmente
percepcionáveis, apenas pressentidos.
Tal o vento sobre o mar.
o)
Ainda hoje penso que somos
como batedores
que partem mais cedo
em busca de clareiras,
lugares com água,
sítios onde repousar o corpo,
lado a lado,
se ferido o coração.
t)
Quando a cidade se despovoa
de amoras, borboletas, zangões,
pátios silenciosos e ramos de árvores
olhámos um para o outro e
caminhámos para mais dentro de nós:
assim minorámos qualquer devastação.
k)
Nem a noite nos oferece guarida,
ansiolíticos,
ou postos fixos de observação;
apenas pensamento e
acesa constelação
na fenda da obscuridade.
r)
Se surge uma apreensão,
uma brecha numa memória à deriva,
beijámo-nos terna e violentamente.
Somos como oceanógrafos
sondando lentamente a superfície da terra.
Se navegamos mais para sul entristecemos:
chegam notícias e visões dessas correntes
enxameadas de plástico que atolam os mares
e de derrames de petróleo que trazem
desolação à margem do silêncio;
sob os nossos pés
em certos dias a praia
bordejada por uma espécie de
alcatrão.
q)
Como quem procura um equilíbrio
entre dois penhascos – o molhe
e a ameaça da subida das águas –
mantemo-nos na senda silenciosa e oculta;
imitámos uma pessoal ordem divina
composta de gestos tímidos,
depois de com materiais humildes
termos construído o caminho, a escrita e a casa.
n)
Uma procura de autenticidade na era digital,
um resguardo num tempo que avizinha
vigilâncias, culpas, consciências colectivas,
onde nem os próprios desejos íntimos
nem as memórias serão já privadas.
m)
Resta armazenar força e coragem.
Sobreviver
como qualquer organismo complexo e vulnerável
que foi feito para ser ferido.
z)
E há essa tua maneira de olhar, ampla e confiante
que parece afastar quaisquer limites e
aumentar o espaço não apenas em volta;
um campo de forças e possibilidades dentro de
nós dois ainda.
Jorge Gomes Miranda nasceu em 1965, na cidade do Porto. Trabalha na área do ensino da Filosofia e é autor de uma obra extensa nos domínios da poesia e da ficção. Foi crítico literário do jornal PÚBLICO e curador de várias antologias literárias. Tem livros publicados no estrangeiro.