Santa Maria da Feira: caladinhos com sabor a conspiração e resistência
Há muitos doces com este nome pelo país, com diferentes formatos e ingredientes, mas os da Feira estão ligados às lutas anti-regime, por direitos democráticos e liberdade.
Mesmo entre a população de Santa Maria da Feira, há quem nunca tenha ouvido falar de caladinhos e muito menos lhes conheça o sabor, primeiro porque a fogaça sempre foi rainha e senhora da terra e, depois, porque, mesmo na vitrina mais apetecível, este doce não é dos que cativam o olho ou a imaginação. Parece um biscoito, mas não é, porque esses são mais secos; bolo não é certamente, porque é demasiado plano e fino; classificá-lo como um doce também soa desadequado, porque não se come à colher; bolacha ainda seria o mais ajustado, pelo seu aspecto espalmado e centro gooey, mas parece falta de respeito. “Bolinho de chá” acaba por ser a expressão mais consensual, talvez porque usa um diminutivo carinhoso e evoca uma bebida modesta e familiar.
Na prática, o caladinho faz-se apenas com ovos, açúcar e farinha, combinados numa massa bem tensa que, levada ao forno a altas temperaturas, garante ao bolinho um exterior crocante e um interior denso, que se quer húmido, com mais ou menos "pito", como se diz localmente. É certo que a aparência e o sabor final registam ligeiras diferenças de casa para casa: os caladinhos da confeitaria Castelo, por exemplo, são mais doces e têm um exterior crocante, que é liso por cima e só irregular nos bordos; os do café O Trovador também são pequenos, mas mais macios, com rachas a decorar a cobertura; os da confeitaria Renascer e da padaria S. Bento mantêm o exterior estaladiço e a humidade interior, mas distinguem-se por maior tamanho. Há supermercados e vendedores ambulantes que dizem vender caladinhos, sim, mas é mentira. Convém que a primeira prova seja numa casa reputada, porque depois, num roteiro que até terá a sua graça por diferentes estabelecimentos da cidade e de outras freguesias do concelho, facilmente se identificam as falsificações. Notam-se logo pela cor excessivamente amarela do pseudocaladinho, pelo grau de secura das migalhas na embalagem, até pelo som que ele faz ao bater no pires de chá.
Mais difícil do que essa triagem é situar a origem deste bolinho no tempo e no espaço – e na linguagem. Numa edição de 1934 do jornal Correio da Feira já há referência aos caladinhos do Café Central, então adquirido por João Nunes Araújo junto à Igreja Matriz, no mesmo local onde em 1912 abrira o Café Calado, mas não se sabe se a palavra de então corresponde ao objecto culinário de hoje. Além disso, se há 112 anos já havia por aí um Café Calado, não seria o sobrenome/adjectivo usado na designação desse estabelecimento a explicar o nome que veio a atribuir-se ao bolinho? Os registos documentais não o esclarecem, ninguém fez as perguntas devidas em tempo útil e é por isso que Joaquim Pinto, da confeitaria Renascer, diz que “ninguém sabe muito bem quando é que apareceu a receita” do caladinho actual.
Em todo o caso, ela terá sido disseminada de forma discreta, sem pompa nem grande ciência, considerando que “é muito simples e nem fermento leva”. Ramiro Santos, do Trovador, nota, aliás, que o aspecto “singelo” desta especialidade joga a seu favor, porque “ninguém valoriza a sua aparência e depois, ao experimentarem o contraste entre o crocante exterior e a humidade do meio, as pessoas ficam surpreendidas pela positiva”. Os dois empresários concordam ainda que, independentemente do rigor histórico ou cronológico, a alegada relação dos caladinhos com a luta antifascista no Estado Novo também lhes vem conferindo carisma acrescido.
A importância de Augusto Padeiro
Cada um à sua maneira, ambos partilham a mesma narrativa, que aqui replicamos com liberdade (também) estilística. Estava-se em tempos de ditadura e os cafés do centro histórico da Feira recebiam figuras destacadas da política e sociedade locais. Certo dia, o estabelecimento do chamado Augusto “Padeiro” acolhia uma reunião de opositores ao regime e alguém se apercebe de que, rua abaixo, se aproximava um apoiante de Salazar, fosse ele um efectivo agente da PIDE, como contam uns, ou apenas um delator em busca de recompensas, como relatam outros. Todos concordam, contudo, que o padeiro se virou então para os conspiradores e lhes disse “Caladinhos!”, para travar a conversa denunciadora.
Ora o fulano que se aproximara pela rua, fosse ele salazarista de gema ou mero bufo, ouviu esse aviso e, em modos azedos, perguntou logo: “Caladinhos porquê? O que é que se passa aqui?” E o Augusto, num desenrascar de última hora, lá improvisa: “Passa-se que os caladinhos estão prontos a sair do forno. Quer comprar alguns também?” E assim se terá dissimulado a crítica e a resistência ao regime, numa época em que bastava um reparo informal contra Salazar para se ir preso.
Na confeitaria Castelo, fundada em 1943, não é essa, contudo, a versão que se conta aos clientes que querem saber mais sobre o que comem. Rogério Portela Almeida, hoje com 85 anos, comprou o estabelecimento em 1969 e foi bem depois disso, na lida da cozinha, que ouviu uma história diferente da boca da Adelaide “das Padeirinhas”, filha de Augusto Valente d’Almeida, o tal Augusto “Padeiro” que é evocado em todos os relatos sobre a origem dos caladinhos e que já em 1908 protagonizava noticiário local por ter oferecido uma fogaça ao rei D. Manuel II quando esse visitou a então denominada Vila da Feira.
“Como não havia sedes políticas, os monárquicos reuniam-se nas farmácias e os republicanos juntavam-se nas padarias, normalmente de noite, para ser às escondidas”, conta o octogenário. “Foi numa dessas reuniões republicanas que apareceu um agente das forças da ordem – era a polícia da época, mas não a PIDE, que ainda nem sequer existia – e trupou à porta. O Augusto ‘Padeiro’ disse ‘Chiu! Caladinhos!’, mas o polícia ouviu e quis saber o que ali estavam a fazer à noite aqueles quatro ou cinco sujeitos. Eles então responderam que estavam a fazer caladinhos, tiraram os tabuleiros do forno, pousaram a fornada no chão e isso convenceu o polícia de que só estavam ali para trabalhar.”
Uma pesquisa recente do Município de Santa Maria da Feira situa esse episódio “na alvorada da República” e aponta-o como razão para que, anos mais tarde, já efectivamente em tempos de ditadura, o nome do bolinho tenha passado a servir de “senha” de segurança nas tertúlias de carácter político. “Quando alguém suspeito entrava numa pastelaria ou café da vila”, explica a recolha, “era comum ouvir-se, alto e em bom som, ‘Ora saia um caladinho para esta mesa!’, e todos sabiam que tinham de fazer silêncio.”
Lenda ou facto, documental ou ficcionada, a tradição demonstra assim que mesmo diferentes versões da história conferem ao caladinho a reputação de iguaria anti-regime, amiga da democracia. Quer a trama se situe no quadro temporal do Estado Novo ou no contexto das anteriores lutas entre monárquicos e republicanos, o entusiasmo revolucionário em torno desta especialidade gastronómica acrescenta um ponto ao conto e gera argumentos como o de que o interior húmido do caladinho se deve precisamente à pressa com que Augusto “Padeiro” retirou do forno aquilo que, sem a visita da polícia, teria ficado a cozer até se transformar num biscoito bem mais seco e vulgar. Nesse esforço por manter a verosimilhança do engodo e prolongar o combate político, a humidade do caladinho conseguiu, portanto, distingui-lo do restante sortido de doçaria da época e, se não foi suficiente para o retirar da sombra (do posterior marketing) da fogaça, tem o mérito de continuar a dar-lhe mais garantias de não decepcionar, o que constitui uma forma segura e bem orgulhosa de resistência.
“O caladinho tanto vai bem sozinho como com vinho do Porto e até com presunto, para contrastar com o doce”, diz Dulce Pinto, do Renascer. “Mas também combina muito bem com queijo da serra, que faz realçar a diferença entre o crocante e o macio, entre o doce e o salgado”, acrescenta Diogo Almeida, da Castelo. Já Ramiro Santos, no Trovador, garante que “a combinação perfeita é caladinho e café”, mas reconhece que o bolinho “nunca desilude com chá ou meia-de-leite” e que agora há até quem o prefira com espumante bruto. A liberdade, quando cresce, tem destas coisas: permite que cada um expresse as suas preferências e, no final, coma o que bem entender, caladinho ou gabando-se disso.